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No dia 8 de março de 2014, há mais de uma década, acordei no planeta terra e fui dormir em marte. Naquele dia, quando deixei a minha casa no amanhecer para mais um treino de triatlo em Fortaleza/CE, em busca de realizar mais uma prova de Ironman naquele ano, não imaginava que retornaria paraplégico, após um atropelamento durante um dos últimos cem quilômetros do treino de ciclismo que percorri naquele dia.
A deficiência física incidental me levou, também, a perceber que meu espaço no universo não era mais o mesmo, embora eu continuasse - oficialmente - em nosso mesmo planetinha azul.
A deficiência desnuda para nós pessoas com deficiência uma das faces mais cruéis do capacitismo: as inúmeras barreiras que, diariamente, excluem, diminuem e invisibilizam milhões de pessoas em função de suas deficiências.
Embora muitos pensem o contrário, sim, habitamos planetas diferentes. Um planeta criado, gerido e planejado por e para pessoas sem deficiência e um outro, erigido por barreiras que excluem, segregam e invisibilizam as pessoas autistas, com deficiência física, intelectual, sensorial, múltipla etc.
Em datas como este Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, 3/12, ainda precisamos exigir que sejamos lembrados em eventos que tratam - pasmem - dos nossos direitos e das nossas vidas. Ainda temos que gritar 'nada sobre nós sem nós', ainda temos que participar apenas como platéia de eventos que não convidam uma única pessoa com deficiência sequer para o debate, ou quando muito, apenas uma para servir de exceção a comprovar a regra, e ainda lutamos diariamente por acessibilidades a fim de garantir a inclusão.
Até temos que ler loas aos dias comemorativos, escritas por pessoas sem deficiência desconectadas com as nossas lutas, que até mesmo nos dias mais representativos nos invisibilizam ao ocupar espaços que poderiam ser nossos, mormente em tais datas. Nossa representatividade, um direito constitucional, continua sendo sumariamente esquecida.
Lá em 2014, eu já sabia que continuava sendo a mesma pessoa, mas também percebi que o ambiente que me cercava não era mais o mesmo. Barreiras que me fazem lembrar diariamente: 'você não é mais bem-vindo aqui'. Festas, espaços, eventos, gestões públicas e privadas, a sociedade, enfim, sequer se esforça para disfarçar alguma preocupação em incluir, em vez de segregar.
De lá para cá, alguma coisa avançou, mas o norte capacitista continua a existir em todos os espaços e tempos, haja vista ser estrutural.
Desde então também mudei. Parafrasendo o ilustre escritor Fernando Sabino em 'O Encontro Marcado', fiz da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sonho uma ponte, da procura um encontro. Em pouco mais de uma década, arregacei as mangas e me dediquei à luta pela inclusão e contra o capacitismo. Afinal de contas, como advogado e jurista, sempre me posicionei em busca da Justiça.
Cheguei a locais e estruturas que nunca antes havia almejado chegar. Fui à ONU por três vezes, na sede de Nova York, falei em defesa das pessoas com deficiência e contra planos de saúde que excluem ilegalmente pessoas com deficiência, dentre outros.
Também falei em defesa da democracia brasileira. Em audiência pública no STF, defendi a suspensão do chamado Decreto da Exclusão, de Bolsonaro.
No Mercosul, durante a RAADH, denunciei ameaças ao nosso estado democrático de direito.
Mergulhei com todas as minhas forças na luta por mais representatividade das pessoas com deficiência na sociedade. Participei da criação e aprimoramento de diversas políticas públicas para pessoas com deficiência, além de ter integrado vários coletivos, seja na OAB/CE, Conselho Federal da OAB e Conselhos de Direitos.
Em setembro último, fui autor do pedido que originou a primeira Campanha Nacional Contra o Capacitismo no âmbito do Judiciário e pude falar no evento de lançamento no CNJ, como também tive audiência com o Presidente do STF, ministro Luis Roberto Barroso, a quem ratifiquei, dentre alguns temas, a importância de nossa representatividade.
Esse breve resumo de uma década, entretanto, como digo sempre, ainda é muito pouco porque nossa exclusão é secular. Em alguns casos, milenar. É preciso que toda a sociedade se engaje na luta das pessoas com deficiência que, no Brasil, representa milhões de brasileiros.
As mudanças que conquistamos, muitas não efetivadas, ainda, são fruto de uma militância aguerrida e histórica de várias e vários companheiros que vieram antes de nós, o que culminou em substanciais mudanças do arcabouço jurídico brasileiro, como a Convenção Interncional da ONU, A Lei Brasileira de Inclusão e diversos outros diplomas infraconstitucionais, estaduais e municipais.
Nossa empregabilidade, com a necessária adaptação razoável nos ambientes de trabalho, não pode continuar apenas como letras da Constituição.
No entanto, ainda hoje, temos que lutar contra a invisibilidade, contra o capacitismo estrutural. Pessoas com deficiência têm pressa, têm impaciência, têm, enfim, o constitucional direito de gritar contra a invisibilidade.
Com a licença, a fim de citar o título do magnífico filme inspirado na célebre e obrigatória obra escrita por Marcelo Rubens Paiva, ele também uma pessoa com deficiência, nós pessoas com deficiência temos que gritar todos os dias: AINDA ESTAMOS AQUI!
Emerson Damasceno é advogado, paratleta, autista e pessoa deficiência física, presidente da Comissão de Defesa da Pessoa com Deficiência da OAB/CE e da Comissão Especial de Defesa da Pessoa Autista do Conselho Federal da OAB.
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