"A trajetória do corpo def perdura até os dias de hoje, desde a história da humanidade. Mesmo com os avanços legais, leis e cotas no setor corporativo, ainda temos nossa humanidade colocada em xeque, a invisibilização da identidade social e o grande desrespeito relativo à própria LBI (Lei Brasileira de Inclusão) de maneira geral", diz Estela Lapponi, performer e videoartista paulistana, que lança 'Corpo Intruso: uma investigação cênica, visual e conceitual', livro em formato digital e em áudio.
A publicação independente é fruto do PROAC LAB 2021, Prêmio pelo Histórico em Artes Visuais.
Haverá tarde de autógrafos e venda especial de exemplares impressos (R$ 91) neste sábado, 10, das 14h às 18h, no Exquisito! Bar, que fica na Rua Artur de Azevedo, n° 2079, Pinheiros, em São Paulo.
"Ainda temos que defender nossa presença no ensino regular, ainda precisamos falar e repetir milhões de vezes sobre o capacitismo estrutural. Isso não tem fim. Os abismos onde éramos jogados continuam de outra forma", afirma a artista, que sofreu um AVC em 20 de agosto de 1997, no início de uma peça apresentada ao ar livre no centro de São Paulo.
"O livro traz a minha trajetória artística a partir do AVC, a partir do corpo que adquire uma def (hemiplegia a princípio e depois e até hj hemiparesia) e persiste em continuar a ser artista. As reflexões sobre como o entorno encara esse corpo def em cena, e a criação do conceito corpo intruso que se transforma em produção de conhecimento artistico e ético, numa busca paradoxal de um pertencimento questionador da colonização do corpo def no que fiz respeito ao mercado inclusivo", explica a autora em entrevista ao blog Vencer Limites.
blog Vencer Limites - O livro tem muitas lembranças? Você precisou buscar essas memórias ou já havia registros guardados?
Estela Lapponi - Tem muita lembrança sim, conforme fui escrevendo foram emergindo. Outras, depois de finalizado, ressurgiram, e outras são muito presentes, pois estão cravadas no corpo.
blog Vencer Limites - Isso doeu ou deu prazer?
Estela Lapponi - O que doeu mais foi perceber que a trajetória do corpo def perdura até os dias de hoje, desde a história da humanidade. Mesmo com os avanços legais, leis e no setor corporativo, ainda temos nossa humanidade colocada em xeque, a invisibilização da identidade social e o grande desrespeito à própria LBI de maneira geral. Ainda temos que defender nossa presença no ensino regular, ainda precisamos falar e repetir milhões de vezes sobre o capacitismo estrutural, não tem fim isso. Os abismos onde éramos jogados continuam de outra forma.
blog Vencer Limites - Você trata dessa realidade no livro? Faz essa reflexão?
Estela Lapponi - Sim, trago um trecho da LBI em relação à educação, por exemplo, de como ela é escrita de uma forma linda, respeitando as pluralidades de como somos, com objetivos de autonomia, mas que na prática não é efetivada.
blog Vencer Limites - Você usa muito o termo 'def'. Como se explica essa abreviação? Qual é a origem dessa ideia?
Estela Lapponi - Def não é um termo, é uma gíria criada pelo Grupo Cultural Roda Viva (Natal-RN), primeiro a integrar pessoas com deficiência no Brasil. Conheci em 2011, em Salvador, a Carolina Teixeira, artista, pesquisadora, def, que tem deficiência igual à minha. Ela usava essa gíria, def, abreviação de pessoa com deficiência. Me identifiquei, me apropriei totalmente, espalhei e hoje nós, artistas com deficiência, nos chamamos de def. É uma tentativa de popularizar, da mesma forma que integrantes da população LGBTQIAPN+ chamam a si mesmos de bicha, que já foi xingamento e hoje é um lugar de apropriação, de empoderamento e de força. Def também vem desse lugar, de você se apropriar da sua própria condição, da sua identidade. Eu costumo bricar ao dizer que 'def é pessoa com deficiência para os íntimos'. É uma cultura, um jeito de estar no mundo, de enxergar o mundo. Nós defendemos a cultura def, uma força de produção e de conhecimento, um orgulho. Não é uma terminologia de origem erudita, def vem da própria vivência e do entendimento do corpo com deficiência no mundo.
blog Vencer Limites - Então, def é diferente de PCD, PNE, deficiente, especial?
Estela Lapponi - Def é a gíria de pessoa com deficiência. PNE, deficiente e especial, ainda bem, são terminologias antigas. Algumas pessoas da academia dos estudos da deficiência estão começando a usar def também, pois nós, artistas defs, estamos sendo entrevistados por esses estudiosos e usamos essa palavra, até mesmo para não ficar repetindo pessoa com deficiência e muito menos abreviando PCD, que vira uma sigla corporativa e até mesmo mercadologica. E nós artistas e pesquisadores defs também estamos colocando isso na academia. Uma forma de criar um território, marcar nossas presenças enquanto produtores de arte, estética e pensamento.
blog Vencer Limites - Ainda sobre 'def', há uma defesa da nomenclatura 'pessoa com deficiência' como a mais atualizada para essa identificação porque prioriza a pessoa e estabelece a deficiência como característica, não resume o indivíduo à deficiência, mas nem sempre essa construção funciona. Pessoas com autismo, por exemplo, querem ser chamadas de pessoas autistas porque não é possível separá-las dessa condição, porque elas são como são por serem autistas. Dessa forma, há uma identidade. Nesse sentido, 'def' também é uma identidade?
Estela Lapponi - Sem dúvida. É um jeito de ser e estar no mundo. E nós artistas defs estamos defendendo essa presença também enquanto cultura, como falo no livro. É como um guarda-chuva de muitas outras culturas, a surda, a cega, o autista e por aí vai.
blog Vencer Limites - Voltando ao começo, ao AVC e a você se tornar uma pessoa com deficiência, como foi essa ruptura?
Estela Lapponi - Foi difícil. Somos forjados no pensamento capacitista, então ter o corpo transformado em algo que tudo informa ser um corpo 'errado' não é fácil de aceitar. Ainda mais já sendo atriz, na época, e tudo o que esse 'ser atriz', de maneira infâme, também carrega de estereótipos de perfeição. Então imagine, né? Foi Maysa: 'meu mundo caiu'.
blog Vencer Limites - E como você expressa tudo isso no palco? Essa identidade, suas opiniões e avaliações sobre ter deficiências e a maneira da sociedade observar as pessoas com deficiência?
Estela Lapponi - Através do conceito Corpo Intruso, tanto nos trabalhos relacionados diretamente a ele quanto em outros que não se relacionam diretamente a ele. Corpo Intruso, paradoxalmente, me trouxe o sentido de pertencimento, então me dá a liberdade consciente de que se crio com o corpo e esse corpo tem uma deficiência, ele não tem outra referência externa a não ser ele mesmo e, nesta direção, produz estética, produz conhecimento em arte. Mas, claro, esse entendimento progressista vai depender do quanto o espectador está familiarizado com ver esse corpo em cena, mas aí não posso fazer nada, o mínimo é causar um nó sináptico nele e deixá-lo com varias perguntas. Eu busco, no meu trabalho artístico, hoje mais do que nunca, produzir obras que marquem essa presença de forma ativa, criativa, com a consciência de que estou substituindo a narrativa triste e catastrófica do corpo def, e que é o ponto de vista da bipedia sobre nós. Não me interessa falar dessa mazela que a bipedia adora escutar para se emocionar numa piedade sádica e inspiracional. Na história da humanidade esse corpo foi tratado assim ou foi morto. Já faz tempo que nossos antepassados não genéticos estão lutando pelo modelo social da deficiência, que nos reconhece como seres humanos com direitos e deveres. Me interessa atualizar a informação sobre nós, com o desejo de progredir nesse assunto. E, nesse sentido, acredito que o fazer artístico atual do def consciente desse entorno tem muito a colaborar. Me interessa falar de potência e não da 'tristeza de ser o que sou'.
blog Vencer Limites - Escrever esse livro sempre esteve nos planos? Demorou para sair da cabeça?
Estela Lapponi - De uns anos pra cá, acho que desde 2017 ou 2018. Eu precisava de algum subsídio para poder produzí-lo, pois tem bastante gente envolvida nesse processo e, seguindo o conceito Corpo Intruso, eu queria lançá-lo de forma independente como forma de criar um território próprio e com autonomia. Tem trabalhos em que eu não trato do assunto deficiência, trato de colonização, feminismo, mas o eucorpo é def e não tenho como tirar isso de mim. Muitas vezes o espectador menos acostumado lê somente a deficiência, como se parasse nessa primeira camada, entende?
Estela Lapponi tem como foco de investigação artística o discurso cênico do corpo com deficiência, a prática performativa e relacional (público) e o trânsito entre as linguagens visuais e cênicas.
Além de atuar em diversas linguagens, presta serviço de consultoria, curadoria e colabora artisticamente em projetos de outros artistas.
Também é coorientadora e professora convidada no Mestrado Profissional em Artes da Cena, parceria entre a Escola Superior de Artes Ce?lia Helena e a Escola Itau? Cultural (2022-2024). Neste ano, além de lançar o livro, está em fase de pós-produção de seu segundo curta-metragem, 'LA HEMI', sem data de lançamento, realizado por meio de edital da SPCine 2021.
FICHA TÉCNICA
Título: Corpo Intruso: uma investigação cênica, visual e conceitual
Autora: Estela Lapponi
Casa de Zuleika, 2023 (Ebook)
Número de páginas: 166
ISBN: 978-65-85551-00-7
Preço de capa: R$ 64,00
Vendas: Amazon, Skeelo, Livraria Cultura e Wook (Portugal)
AUDIOBOOK
ISBN 9786585551007
Duração: 4h46 minutos
Autora e Leitora: Estela Lapponi
Gravação, Edição e mixagem: Bianca Martins
Participação Especial: Edu O. e T. Angel
Preço: R$ 64,00
Plataformas: Spotify, Deezer e Google Play
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