A Uber do Brasil e um motorista ex-parceiro do aplicativo foram condenados pela Justiça a pagarem uma indenização por dano moral (o valor não será divulgado) ao administrador Darley de Oliveira, de 28 anos, que é cego. A ação foi ajuizada em 2020, após a recusa de uma viagem com uma cadela-guia. O caso foi divulgado com exclusividade pelo blog Vencer Limites. Empresa e condutor podem recorrer.
Na decisão, o juíz Sang Duk Kim, da 7ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, cita a Lei Municipal de São Paulo nº 16.518/2016, que dispõe sobre o direito da pessoa com deficiência visual ingressar com cão-guia em táxi ou outros tipos de veículos de transporte individual remunerado de passageiros, e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (nº 13.146/2015), que assegura o mesmo direito em todo o País.
"Não há dúvidas de que não se trata de mero aborrecimento. O autor precisava se locomover a um compromisso e foi impedido simplesmente por estar acompanhado de seu cão-guia. É notório o sentimento de exclusão causado ao autor. A conduta trouxe transtorno ao requerente e deve ser reparada", destacou o juíz.
O condutor também enfrenta uma ação por crime contra a pessoa com deficiência. Segundo informações do TJSP, o processo aguarda manifestação do Ministério Público.
Orientar de fato - "Meu sentimento é de que a justiça foi feita. Mais do que uma mera multa, que essa punição sirva para que a Uber oriente de fato seus motoristas, porque o transporte da pessoa com deficiência visual e seu cão-guia, do usuário de uma cadeira de rodas, é uma obrigação, não é um favor e nem uma bondade. Quem se recusa a fazer isso está descumprindo a lei e pode ser punido", afirma Darley em entrevista ao blog Vencer Limites sobre a decisão.
"É fundamental ter uma orientação constante, com lembretes frequentes, principalmente sobre a diferença entre um animal de estimação convencional e um cão-guia. Isso precisa ficar muito claro", defende o administrador.
O caso - Morador da região da Mooca, na zona leste da capital paulista, Darley pediu o carro em 2 de outubro, por volta de 7h10, para ir à uma sessão de fisioterapia. Imagens registradas por uma câmera de segurança mostram um veículo branco se aproximando do rapaz, que tenta abrir a porta traseira do veículo com a mão esquerda enquanto segura a coleira da cadela Clark com a mão direita (a golden retriever que atua como guia e tem entrada em qualquer local garantida pelo artigo 117 da Lei Brasileira de Inclusão). O automóvel fica parado na rua, próximo à calçada, por alguns segundos, e depois vai embora.
"Sempre informo ao motorista que sou cego e peço para buzinar quando chegar, para eu me aproximar e entrar no carro", diz o jovem. "Eu costumo sentar atrás do condutor e solicito que movimente o banco ao lado dele para abrir espaço que permita à Clark sentar ou deitar no assoalho do carro. Ela nunca vai no banco", explica.
"Por causa da pandemia, não era permitido viajar ao lado do motorista. Foi tudo bem rápido. O carro chegou, ouvi a buzina e me aproximei da porta de trás. Tentei abrir e não consegui. Fui até a janela e argumentei, mas não adiantou. O motorista se recusou e acelerou", relata Darley.
O passageiro registrou boletim de ocorrência na 1ª Delegacia de Polícia da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, que instaurou inquérito.
Lição valiosa - "Independentemente do valor da indenização, que sempre será ínfimo diante do constrangimento e sentimento de injustiça que uma pessoa com deficiência visual passa ao ser proibida de entrar em qualquer lugar com seu cão-guia, é imensamente satisfatório vencer uma ação como esta", diz a advogada Diana Serpe, especialista em direitos das pessoas com deficiência, representante de Darley de Oliveira.
"É muito comum motoristas de carros de aplicativos se negarem a transportar o cão-guia, e, obviamente, essa conduta deve ser rechaçada. Infelizmente, ainda há pessoas sem qualquer tipo de empatia e senso de cidadania", ressalta a advogada.
"Decisões como essa, além de cunho inibitório, deixam uma lição valiosa para o motorista, que irá repensar antes de agir. Qualquer discriminação contra a pessoa com deficiência é crime e deve ser rechaçada", esclarece a especialista.
"É muito importante que a pessoa com deficiência, ao sofrer qualquer tipo de discriminação, faça um boletim de ocorrência. Embora seja uma sensação incrível vencer esta ação, espero que, com o tempo, possamos viver em uma sociedade melhor, em que não haja necessidade de acionar a Justiça por ser proibido de entrar em carro de aplicativo ou em qualquer outro lugar com cão-guia", completa Diana Serpe.
Resposta - Questionada pelo blog Vencer Limites sobre a decisão da Justiça, a Uber respondeu em nota.
"A Uber não tolera qualquer forma de discriminação em viagens pelo aplicativo e reafirma o seu compromisso de promover o respeito, igualdade e inclusão para todas as pessoas que utilizam o nosso app. Temos como política que os motoristas parceiros cumpram a legislação que rege o transporte de pessoas com deficiência e acomodem cães-guia.
A Uber fornece diversos materiais educativos a motoristas parceiros sobre como tratar cada usuário com cordialidade e respeito. A empresa possui um guia que tem como objetivo apoiar os motoristas parceiros com informações sobre como ter interações positivas e respeitosas com usuários que têm alguma deficiência.
Nos casos em que usuários sentirem que o tratamento dado pelo parceiro não foi respeitoso, ou que desrespeitou os termos da lei, ressaltamos sempre a importância de reportarem esses incidentes à Uber, para que possamos tomar as medidas necessárias. Conforme explicitado no Código da Comunidade Uber, casos comprovados de motoristas que adotem conduta discriminatória podem levar à perda de acesso à plataforma, como aconteceu no caso relatado", diz a nota.
A empresa indicou consulta à página uber.com/info/acessibilidade-uber e complementou, também em nota.
"Motoristas parceiros devem cumprir todas as leis federais, estaduais e municipais que regem o transporte de passageiros com deficiência. A violação, por um motorista parceiro, de leis que regulam o transporte de passageiros com deficiência, inclusive quanto ao uso de animais de serviço, constitui um descumprimento dos Termos de Uso da Plataforma acordado entre as partes.
Assim, animais de serviço devem ser acomodados de acordo com as leis de acessibilidade em vigor. Além disso, os motoristas parceiros devem acomodar passageiros usando andadores, bengalas, cadeiras de rodas dobráveis e outros dispositivos de assistência, tanto quanto seja possível.
Qualquer denúncia de discriminação resultará na desativação temporária da conta, enquanto a Uber analisa o incidente. Denúncias confirmadas de discriminação relativas à violação de lei relacionada ao transporte de passageiros com deficiência poderá resultar na perda permanente do direito de acesso à plataforma Uber", concluiu a empresa.
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