As escritoras negras Benedita Lopes, Catita, Cláudia Walleska, Esmeralda Ribeiro, Joice Aziza, Mari Vieira e Samira Calais vivem em regiões diferentes do Estado de São Paulo. As gerações, histórias de vida e perspectivas também são múltiplas. Mas essas pluralidades convergem, se reconhecem e caminham juntas no coletivo de escritoras negras Flores de Baobá.
Desde 2018, elas participam de eventos literários e culturais para divulgar suas escritas e, ao mesmo tempo, ajudar outras mulheres negras a se entenderem como escritoras, incentivando a literatura afro-brasileira. É uma missão literária que se esparrama na luta pela igualdade de gênero, equidade social, liberdade religiosa, espezinhando qualquer tipo de discriminação.
Essa atuação externa - e aquilo que escrevem - é gestada em discussões dentro do próprio grupo. Mensalmente, elas se encontram para compartilhar e conversar sobre suas escritas. Elas trocam os textos e cada uma dá seu pitaco.
São muito mais que eventos literários. “É um grupo de amigas negras que trata de questões quase sempre invisibilizadas. A mulher negra não é bem aceita em vários meios. Por isso, a gente precisa se cuidar”, diz a professora de História Joice Aziza, de 44 anos, idealizadora do grupo.
“Ao longo dos anos, nossa união se consolidou, cultivando não apenas nossas escrevivências individuais, mas também o cuidado e o apoio mútuo, valorizando a diversidade e a singularidade de cada uma de nós”, diz Mari Vieira, 48 anos, professora de Língua Portuguesa da rede pública estadual.
Essas assembleias pretas deram o caldo para o primeiro trabalho do grupo, o livro “Das Raízes à Colheita” (Feminas), lançado no ano passado, no Museu Afro Brasil, em São Paulo. O lançamento contou com a presença da escritora Conceição Evaristo.
“Não é uma coletânea/antologia de textos, mas sim um livro de uma autoria única, um corpo único, um coletivo cuja unidade é a diversidade de nós sete”, como explica a professora de Língua Portuguesa Catita, aos 50 anos.
O volume reúne poemas, contos, crônicas, cartas, canções nos mais variados estilos literários e registros linguísticos. As temáticas não se resumem às mazelas do racismo e abrangem ancestralidade, identidade e feminismos.
Coletivo contribui para o reconhecimento como escritoras
Essa construção coletiva tem sido o momento de reconhecimento como escritora para algumas integrantes do coletivo. A professora Mari Vieira conta que tem o projeto para um livro individual em mente, que ainda não é para este ano. Segundo ela, o coletivo representa “parte fundamental do seu trabalho como escritora”.
“Meu livro-solo só tem vida depois que conheci as meninas. Comecei a entender e a aceitar que posso ser uma escritora depois que entrei no coletivo”, diz Joice Aziza.
Seu livro-solo é Diário de isolamento (Feminas), vencedor de um edital da Lei Paulo Gustavo de incentivo à cultura no ano passado em Caieiras, Grande São Paulo. São poemas, crônicas e relatos sobre como a pandemia de covid-19 atravessou a vida, os sentimentos e a trajetória de mulheres periféricas.
A jornalista Samira Calais, de 35 anos, acrescenta que as mulheres negras dificilmente serão convidadas a publicar suas obras. “O fato de não termos oportunidades nos leva a engavetar nossos escritos e a não nos intitularmos como escritoras. Por isso, os coletivos fortalecem esse movimento de fazer com que mulheres negras se reconheçam como autoras”.
Assim como aconteceu com Joice, Samira buscou na crise do coronavírus a inspiração para seu primeiro título individual: Cenas da pandemia (Feminas), crônicas ilustradas sobre o momento de isolamento.
Nesse contexto, a atuação do coletivo ajuda a desatar um nó da produção literária negra e feminina no Brasil, descrito pela servidora pública aposentada Benedita Lopes.
“Se a escritora não aborda temas ligados à questão negra, é considerada alienada. Se, por outro lado, seus escritos trazem essa temática principal, ela escreve uma literatura menor, como se tecer poemas e narrativas ligadas às nossas histórias de vida pouco valesse. Assim, os quilombos literários e os coletivos nos possibilitam existir como escritoras negras”, diz a autora de Porções Para Se Acordar Presente.
Aos 66 anos, Benedita está envolvida em vários projetos que ainda não ser podem ser divulgados, como duas coletâneas, uma como escritora e outra como apresentadora. Os projetos de livro-solo envolvem títulos de poemas, cartas, memórias, além de um convite aceito para um livro infantil.
O desafio de conquistar mais leitores
Quase todas as integrantes do coletivo exercem outras atividades relacionadas à escrita. Um ofício influencia o outro, na visão de Catita, mas são personas diferentes em cada um deles. “A escritora ficou abafada, não se permitindo ser e não reconhecida por muito tempo, por ser mulher, negra, de origem pobre”, diz a professora do Colégio Bandeirantes.
Depois do livro de poemas Morada (Feminas) e o de crônicas Notícias da Incerteza (Desconcertos), ela espera em breve publicar seu primeiro livro para o público infantil-juvenil, outro de contos e ainda um de cartas.
A exceção nesse cenário de atividades correlatas à literatura é a autora Claudia Walleska. Bacharel em Enfermagem com pós-graduações na área da saúde, ela coordena o Núcleo de Desenvolvimento Sustentável e Promoção à Saúde na Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo e atua no Instituto Afro Amparo, instituição voltada a ações de saúde e bem-estar para a população negra e formada só por profissionais negros.
Após participação em 16 publicações, a autora de 43 anos enfrenta o desafio de seu primeiro livro individual. Ela quer contar a vida da mãe de santo Dona Tereza, ativista de 80 anos que atua na região de Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo.
Claudia também integra o projeto Eróticas Yabás, antologia da editora Anadara brasiliana que pretende dar voz e vez às autoras negras cis e trans como sujeitas de sua própria sexualidade e erotismo. “O livro reafirma os direitos das mulheres, especialmente das mulheres negras, de serem sujeitas de sua própria história literária. No estilo, ‘eu escrevo o que eu quero’, sem padrões”, afirma.
Ativista histórica na luta pela literatura negra como coorganizadora da série Cadernos Negros que, neste ano, chega à sua 45ª edição, a jornalista Esmeralda Ribeiro aponta a evolução do mercado editorial, mas com ressalvas.
“Hoje já temos um número significativo de produções. Há também coletivos de escritoras negras e jovens, espalhados pelas periferias das cidades e do Brasil. Saber da vasta produção, que resultou em brilhantes textos, sejam eles de qualquer gênero, só nos enriquece”, diz a autora de Malungos & Milongas, Orukomi – Meu Nome (Quilombhoje) e Poemas Ynacabados (Feminas).
Segundo ela, o “desafio de sempre” é a ampliação do público. “Também que as nossas publicações estejam em todas as bibliotecas do País, que possamos criar e publicar nossos textos, abordando questões diversas, além do racismo, que fica internalizado em nós”.
* Este conteúdo foi produzido em parceria com o coletivo Flores de Baobá, formado para difundir a obra de autoras negras no País
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