Walser e Sterne, dois ícones no santuário do ficcionista

O suíço e o irlandês são protagonistas de Doutor Pasavento

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Foto do author Antonio Gonçalves Filho

Em Doutor Pasavento, Vila-Matas - ou seu alter ego Pasavento - entra num quarto de hotel, se encara no espelho e, horrorizado, vê o rosto de Thomas Pynchon, para logo depois se tranquilizar. Como poderia ter visto Pynchon se ninguém sabe o aspecto que tem? Como se sabe, o escritor norte-americano pós-moderno não se deixa fotografar e muito menos dá entrevistas (como se viu, ao contrário de Vila-Matas). Pynchon é um dos muitos autores citados na extensa lista das afinidades eletivas do escritor catalão em Doutor Pasavento, que começa com Laurence Sterne, passa por André Gide, Julien Green, Robert Walser e chega a W. G. Sebald.De todos, Walser é a referência principal, até mesmo porque a literatura do suíço é um permanente exercício de se colocar no lugar do outro, desaparecer na persona dos infelizes que acabam tendo destino semelhante ao autor, como lembra Vila-Matas ao mencionar uma passagem de Os Irmãos Tanner. Nela, Walser antecipa em meio século (esse seu segundo romance é de 1907) as circunstâncias de sua morte, no dia de Natal de 1956, congelado sob a neve. Também nessa obra o protagonista ouve numa conversa de bar a história de um parente internado num manicômio - por trágica coincidência,Walser passou 23 anos internado num deles.Walser, segundo Vila-Matas, teria, nesse longo e desesperado convívio com o silêncio, a intuição "de que ele mesmo ia se decompor e se dispersar em múltiplos fragmentos, a exemplo do livro em primeira pessoa que disse sempre estar escrevendo". Ele observa, porém, que esse projeto em primeira pessoa não era de caráter construtivo. Tratava-se, antes, de "um trabalho de desintegração desse eu", defende, definindo Walser como "um escritor sem motivo, alguém que escrevia com uma assombrosa ausência de intenções".Sobre o irlandês Laurence Sterne - uma referência para Marchado de Assis -, Vila-Matas corrige uma injustiça literária, concedendo ao autor a honra de ter inventado o "fluxo de consciência" dois séculos antes do seu conterrâneo James Joyce. Fascina-o o principal romance de Sterne, A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, para ele "um ensaio com um fio tênue de narrativa, construído quase em sua totalidade com digressões". É justamente essa estratégia, a divagação, que faz da escrita de Vila-Matas a mais atraente rota de fuga da realidade para a literatura - e desta para o que chamam de mundo concreto.

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