O Brasil vai liderar pela primeira vez uma expedição científica internacional de circum-navegação do continente antártico. Serão dois meses de viagem num navio quebra-gelo russo com 140 pessoas a bordo, sendo 61 cientistas - 27 brasileiros e 34 de outros seis países: China, Índia, Rússia, Argentina, Chile e Peru. A missão é tentar navegar o mais próximo possível da costa ao longo de todo o trajeto, de mais de 20 mil quilômetros de extensão.
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Guardiã de 90% do gelo do planeta, a Antártida tem atualmente 99,5% de seu território de 13,8 milhões de km² coberto por um imenso manto gelado com espessura média de 2 km. Na costa, parte dessas geleiras flutua. O que os cientistas querem saber é o quão estável estão essas frentes costeiras.
“Essa é uma missão que está relacionada sobretudo à principal questão científica do momento, que é mensurar o impacto das mudanças do clima no gelo do planeta, inclusive da Antártida”, explica o coordenador da expedição, Jefferson Cardia Simões, delegado do Brasil no Comitê Científico para Pesquisa Antártica do Conselho Internacional de Ciência e integrante do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Segundo o pesquisador polar, cientistas preveem que o derretimento de gelo em algumas partes do planeta deve fazer o nível do mar subir de 1 metro a 1,2 metro até 2100.
E é fundamental estudar o gelo antártico nas frentes costeiras porque, dependendo de seu nível de instabilidade, há a hipótese de que ele possa “escorregar” mais rapidamente para o Oceano Austral. Nesse caso, alguns modelos já indicam que o nível do mar possa subir até seis metros nos próximos 200 anos.
Dois meses de viagem e ventos de até 300 km/h
O plano dos pesquisadores é sair do porto de Rio Grande (RS) em 22 de novembro e chegar no dia 25 de janeiro ao mesmo local. Ao longo do trajeto, eles devem coletar amostras para diferentes tipos de estudos. A periferia da Antártida é um dos lugares que mais aquecem hoje no mundo, e isso tem levado a uma série de mudanças ambientais.
Simões explica que, com o derretimento do gelo e a entrada de água doce, o oceano está se tornando menos salino. “Esse oceano absorve uma quantidade enorme de dióxido de carbono, que está em excesso na atmosfera devido à poluição humana, então está se tornando também mais ácido, o que impacta desde micro-organismos até animais maiores.”
Um oceano mais quente ainda tem consequências para o clima e para a frequência, por exemplo, das frentes frias que atingem o Brasil (veja abaixo).
“Essa expedição é multidisciplinar e vai muito além de só entender o gelo”, resume Simões. “Vamos ter pesquisadores de diferentes áreas fazendo medições sobre temperatura, salinidade, em diferentes profundidades do oceano. Além de pesquisas biológicas, químicas, atmosféricas. Queremos ver, por exemplo, se já há sinais no gelo antártico das queimadas deste ano no Brasil e em parte da América do Sul.”
E que condições meteorológicas os cientistas esperam enfrentar ao longo dos dois meses de viagem? “Na costa antártica, a temperatura do alto verão vai de 0°C a -20°C, com sensação térmica de -30°C ou -40°C devido ao vento. E os ventos podem chegar a 300 km/h na costa do lado do Oceano Pacífico”, afirma o coordenador da expedição. “Há dias também em que é mais difícil coletar amostras porque o tempo fica mais violento, mas isso faz parte das expedições antárticas.”
Outra dificuldade de circum-navegar a Antártida perto da costa é enfrentar o cinturão de mar congelado que costuma se formar ao redor do continente. Jefferson Simões explica que o chamado gelo marinho pode ter até três metros de espessura, por isso a necessidade de se ter um quebra-gelo com laboratório científico. “É preciso muita calma para navegar no gelo marinho, onde só se consegue avançar alguns quilômetros por dia.”
Como apesar de já fazer expedições antárticas desde 1982 o Brasil ainda não possui navios que navegam em água congelada, a solução foi recorrer ao Akademik Tryoshnikov, do Instituto de Pesquisa Ártica e Antártica, de São Petersburgo.
“Até hoje só tínhamos tido participações individuais de alguns cientistas brasileiros em viagens ao redor da Antártida. Então negociamos entre diferentes países do BRICs e da América do Sul para dividir custos e recursos. Os russos entraram com o quebra-gelo. Importante lembrar que o tratado antártico incentiva a cooperação para entender problemas comuns. E as mudanças climáticas são um problema da humanidade”, diz Simões.
Se trouxéssemos todo o gelo antártico e espalhássemos pelo território nacional, teríamos uma camada homogênea de espessura de 3 km em todo o Brasil. Pequenas mudanças nesse gelo, que é 90% do gelo do mundo, são muito importantes. E estão relacionadas às mudanças do clima, porque esse gelo está respondendo ao aumento tanto da temperatura atmosférica como da temperatura do Oceano Austral.
Jefferson Simões, coordenador da Expedição Internacional de Circum-navegação Costeira Antártica
A Expedição Internacional de Circum-navegação Costeira Antártica terá financiamento também da fundação suíça Albédo Pour la Cryosphère, dedicada ao estudo e à preservação do gelo do planeta, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs).
Pesquisas ajudarão a entender mudanças climáticas e eventos extremos
O professor do Departamento de Geografia da UFRGS Francisco Eliseu Aquino coordenará as pesquisas do grupo internacional de 9 climatologistas - 5 brasileiros, um indiano, um chinês, um chileno e um russo - durante a expedição.
Ele conta que o plano é fazer perfurações em 16 pontos de geleiras importantes ao redor de Antártida e colher amostras a até dez metros de profundidade. Elas permitirão estudar os últimos oito anos, que foram os mais quentes do século.
“Essas amostras e a comparação com a circulação atmosférica observada no Hemisfério Sul e na Antártida fornecerão o registro preciso, por exemplo, de eventos extremos, precipitações e transporte de poluentes ou material de queimadas dos continentes para a Antártida”, explica.
Aquino lembra que pesquisas que envolvem gelo, neve, clima e oceanos permitem compreender não só o clima do passado e do presente como observar a intensificação da variabilidade climática e visualizar o cenário das próximas décadas.
“Todas essas intensificações - de um oceano mais quente, um planeta mais quente, ondas de calor, tempestades, ciclones extratropicais mais intensos, ondas de frio mais vigorosas e curtas - deixam seu registro na neve, no gelo, no oceano, na redução do gelo marinho. Então essa investigação completa ao redor da Antártida, o mais perto possível da costa, é uma oportunidade científica ímpar.”
A principal importância climatológica desta circum-navegação é poder no ano mais quente deste século - 2024 - monitorar oceanos, atmosfera e precipitação extrema no entorno e na periferia da Antártida. Isso é de extrema relevância para a compreensão da mudança climática e sua intensificação no atual cenário
Francisco Eliseu Aquino, professor da UFRGS
Com sua circulação atmosférica em conexão direta com o Hemisfério Sul, a Antártida é vital para o sistema climático do planeta. É da Antártida por exemplo que vêm as famosas frentes frias, que, ao se chocarem com um Brasil mais quente e com mais ondas de calor, vão possibilitar tempestades e vendavais mais intensos, com alto poder de impacto e destruição.
EXPEDIÇÃO ANTÁRTIDA
Lembram por exemplo do famoso apagão do fim do ano passado em São Paulo causado por quedas de árvore sobre a fiação elétrica após temporal? Aquino lembra que foi consequência de um ciclone extratropical cuja frente fria veio do Mar de Weddell, na Antártida.
“Ao encontrar uma região como São Paulo mais aquecida, o contraste permitiu tempestades muito mais severas, com rajadas de vento mais intensas. Temos observado a intensificação desse tipo de evento também em outras partes do Brasil, inclusive no Rio Grande do Sul, que registrou inundações recordes em setembro e novembro de 2023 e maio de 2024, com impacto para milhões de pessoas”, afirma.
“A regulação do clima e da chuva no Centro-Sul do Brasil depende da Antártida. Quanto mais quente e seco o Brasil fica, mais se tem prejuízo na agricultura, no abastecimento hídrico e de energia elétrica e na saúde das pessoas.”
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