Cientistas relataram ter encontrado, ao que parece, marcas de corte (“butchery marks”, termo técnico em inglês) feitas com ferramentas de pedra em um dos fósseis mais antigos, de um ancestral humano. Os estudiosos descreveram o achado em um artigo publicado na segunda-feira, 26, na revista científica Scientific Reports, do grupo Nature, e reacenderam um debate sobre os hábitos alimentares comportamento humano antigo, antropofagia (ato de comer carne de um ser humano) e canibalismo (prática cultural na qual uma espécie consome a carne de indivíduo da mesma espécie).
“No caso desta tíbia (”osso da cenela”) fóssil de hominídeo, não conhecemos a identidade da espécie do consumidor nem do consumido. Devido a essa falta de informação, não podemos fazer uma alegação de canibalismo”, escrevem. “Porém, devido à possibilidade de um indivíduo da mesma espécie de hominídeo ao qual pertence a tíbia também ter infligido as marcas de corte na tíbia, incluímos uma discussão sobre a antropofagia hominídea, que pode incluir o canibalismo.”
Práticas canibais e de antropofagia já foram confirmadas em espécies de hominídeos mais recentes, de acordo com o estudo. O novo estudo norte-americano sugere que esse comportamento pode datar de muito antes na linhagem que nós precedeu na Terra.
Se ainda há dúvidas sobre antropofagia ou canibalismo, a razão dos cortes parece ser mais clara para os pesquisadores. “Parece que provavelmente a carne dessa perna foi comida, e foi comida para nutrição, não por motivos ritualísticos”, afirma a coautora do estudo, a paleontóloga Briana Pobiner, em comunicado à imprensa.
Para entender o que explicava as marcas lineares curtas e estreitas com uma trajetória reta na tíbia do fóssil KNM-ER 741, os pesquisadores compararam-nas com quase 900 outros cortes encontrados em animais fossilizados da mesma época (cerca de 1,5 milhão de anos atrás). “Essas marcas de corte se parecem muito com o que vi em fósseis de animais que estavam sendo processados para consumo”, disse Briana.
Surpresa
No artigo, Briana relata a surpresa de ter encontrado marcas de carnificina no fóssil. Em 2017, ela na verdade buscava por potenciais marcas de mastigação algum dano carnívoro em fósseis de ancestrais humanos da região de Turkana, no Quênia, datados de 1,8 a 1,5 milhão de anos atrás. Supõe-se que hominídeos do Plioceno e do início do Pleistoceno foram, às vezes, vítimas de predação por animais carnívoros maiores com os quais coexistiam.
Porém, “inesperadamente”, como ela escreve, observou potenciais marcas de carnificina em um único fóssil: o KNM-ER 741. “Esta observação foi inesperada porque, enquanto as marcas de corte deixadas por hominídeos em fósseis de animais começando pelo menos no início do Pleistoceno, apontam para um aumento na aquisição de carne e medula durante a evolução do gênero Homo e centenas de fósseis marcados de outros animais foram identificados no Membro Okote da Formação Koobi Fora (sítio arqueológico no Quênia), nenhuma marca de corte em fósseis de hominídeos desta área temporal e geográfica foi relatada.”
Mais antigo?
Embora sejam extremamente cautelosos em não cravar que as marcas no osso comprovam canibalismo ou de antropofagia (veja discussão abaixo), os pesquisadores não descartam que o fóssil possa ser a evidência mais antiga de uma prática do tipo.
Outro fóssil, de um crânio, já havia gerado debates sobre o primeiro caso conhecido de parentes humanos massacrando uns aos outros. A idade dele, porém, é cercada de incertezas. As estimativas variam de 1,5 a 2,6 milhões de anos. Estudos também divergem sobre a origem das marcas encontradas nele.
Conforme o jornal norte-americano The New York Times, o estudo de Briana e da equipe dela reacendeu uma rusga antiga e dividiu especialistas da arqueologia, envolvendo o debate sobre canibalismo entre nossos parentes evolutivos. Alguns profissionais saudaram a descoberta e elogiaram a análise cuidadosa que gerou o artigo; outros acusaram os pares de “clickbait”.
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Fóssil KNM-ER 741
O KNM-ER é o nome dado para a tíbia esquerda de um hominídeo, encontrada em 1970. A tíbia é um longo osso localizado entre os pés e os joelhos, popularmente é conhecido por “osso da canela”.
A espécie do ancestral humano é marcada por controvérsias. O fóssil foi originalmente atribuído ao Australopithecus boisei (conhecidos por ter crânio ideal para mastigação pesada), e, mais tarde, ao Homo erectus (primeiros do gênero Homo a apresentar proporções corporais semelhantes às nossas, com pernas alongadas e braços mais curtos). Na famosa Wiley-Blackwell Encyclopedia of Human Evolution, ele “a alocação taxonômica convencional atual é H. erectus ou Hominin gen et sp. indet.”, “porque tão pouco se sabe sobre a morfologia tibial dos primeiros hominídeos”. Devido à incerteza taxonômica, os pesquisadores do novo estudo preferiram se referir a ele como um hominídeo (hominin gen. et sp. indet).
O espécime apresentava 11 marcas na diáfise proximal da tíbia. No comunicado à imprensa, Briana explicou que os arranhões estão localizados onde o músculo da panturrilha estaria preso ao osso. “Um bom lugar para cortar se o objetivo é remover um pedaço de carne.” “As marcas de corte também são todas orientadas da mesma maneira, de modo que uma mão empunhando uma ferramenta de pedra poderia tê-las feito todas em sucessão sem alterar a pegada ou ajustar o ângulo de ataque.”
Os pesquisadores relatam que, desses 11, dois arranhões rementem a dentes. No entanto, não dentes de outros ancestrais humanos, mas sim de um felinos (ancestrais dos leões modernos). As outras 9 foram classificadas como marcas de corte por ferramenta de pedra, que, muito provavelmente, são sinais de massacre por outros hominídeos.
No comunicado à imprensa, os pesquisadores relataram que, como nenhuma das marcas de corte se sobrepõe às marcas de mordida, é “difícil inferir qualquer coisa sobre a ordem dos eventos que ocorreram”. “Por exemplo, um grande felino pode ter recolhido os restos mortais depois que os hominídeos removeram a maior parte da carne do osso da perna. É igualmente possível que um gato grande tenha matado um hominídeo azarado e depois tenha sido perseguido ou fugido, antes que hominídeos oportunistas assumissem a matança.”
Canibalismo?
A possível carnificina desse hominídeo, contudo, leva a um debate um pouco mais complexo, que exige diferenciar antropofagia e canibalismo. A primeira tem a ver com o consumo ocasional de carne humana, no qual o consumidor pode ser de uma espécie diferente do consumido. A segunda se refere a um hábito cultural, que tem diferentes significados e objetivos - nutricionais até ritualísticos -, e é definido por como o ato de consumir tecidos de indivíduos da mesma espécie.
Há evidências claras e confirmadas por diferentes estudos de canibalismo entre neandertais europeus e antropofagioa entre H. Erectus da África e da Europa. No entanto, são de espécies muito mais novas do que o KNM-ER 741. Há “apenas um punhado” de sítios do Pleistoceno (época do KNM-ER 741), com sinais de canibalismo e antropofagia.
O KNM-ER 741 também é o único de sua “ossada”, encontrada no Quênia, a apresentar marcas de carnificina. Com isso, os pesquisadores não se arriscaram a fazer uma alegação de canibalismo, mas não descartam a possibilidade de antropofagia. “Concluímos que se a antropofagia ocorreu após o descarnamento do KNM-ER 741, foi uma atividade oportunista, prática e funcional que ocorreu simplesmente no contexto de obtenção de alimentos”, escreveram.
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