Ciência do esquecimento: por que já estamos perdendo nossas memórias da pandemia de covid-19

Tanta coisa aconteceu nesse período que foi difícil para nosso cérebro codificar a sobrecarga de informações que tivemos de filtrar

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Por Richard Sima
Atualização:

Quanto você se lembra dos últimos três anos de vida pandêmica? Quanto você já esqueceu?

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Muita coisa aconteceu desde o “tempo de antes”. Formaturas canceladas, escassez de papel higiênico, aplausos noturnos para profissionais de saúde, novas vacinas, listas de espera para tomar a primeira dose e muito mais.

A pandemia atrapalhou a vida de todo mundo, mas foi verdadeiramente transformadora apenas para um subconjunto considerável de pessoas: aquelas que perderam alguém para a covid, profissionais de saúde, imunocomprometidos ou quem desenvolveu covid longa.

Para o resto das pessoas, muitos detalhes provavelmente vão desaparecer com o tempo, por causa das peculiaridades e limitações de quanto nossos cérebros conseguem guardar.

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“Nossa memória é projetada para não ser como a de um computador”, disse William Hirst, professor de psicologia da New School for Social Research, em Nova York. “Ela se apaga.”

Por que talvez comecemos a esquecer a pandemia

O esquecimento está intimamente ligado à memória.

“Uma suposição básica que podemos fazer é que todo mundo esquece tudo o tempo todo”, disse Norman Brown, professor de psicologia cognitiva que pesquisa memória autobiográfica na Universidade de Alberta. “O padrão é esquecer.”

Para entender por que podemos esquecer partes da vida pandêmica, vale a pena entender como nos apegamos às memórias para começo de conversa. Seu cérebro tem pelo menos três fases de memória interrelacionadas: codificação, consolidação e recuperação de informações.

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Quando encontramos novas informações, o cérebro as codifica com alterações nos neurônios do hipocampo, um importante centro de memória, bem como em outras áreas, como a amígdala no caso das memórias emocionais. Esses neurônios incorporam um traço de memória física, conhecido como engrama.

Muitas dessas informações são perdidas, a menos que sejam armazenadas durante a consolidação da memória, o que geralmente acontece durante o sono, deixando as memórias mais estáveis e duradouras. O hipocampo essencialmente “reproduz” a memória, que também é redistribuída aos neurônios no córtex para armazenamento de longo prazo. Uma teoria diz que o hipocampo armazena um índice de onde esses neurônios corticais de memória ficam disponíveis para recuperação – como a pesquisa do Google.

Por fim, durante a recuperação da memória, os neurônios de rastreamento da memória no hipocampo e no córtex são reativados.

Mas as memórias não são fixas e permanentes. A memória fica sujeita a alterações cada vez que a acessamos e consolidamos.

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O que lembramos tende a ser distinto, carregado emocionalmente e considerado digno de processamento e reflexão em nossa cabeça depois que o evento aconteceu. Nossas memórias estão centradas em nossas histórias de vida e no que mais nos afetou pessoalmente.

Contra esse pano de fundo neural, a pandemia pareceria inesquecível: um evento histórico assustador, como a maioria das pessoas nunca viu.

A pandemia atrapalhou a vida de todo mundo, mas foi verdadeiramente transformadora apenas para um subconjunto considerável de pessoas: aquelas que perderam alguém para a covid, profissionais de saúde, imunocomprometidos ou quem desenvolveu covid longa. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

A sobrecarga de informações e a monotonia interferem na memória

Mas tanta coisa aconteceu que foi difícil para nosso cérebro codificar a sobrecarga de informações que tivemos de filtrar: máscaras, distanciamento social, mais casos, mais mortes, novas ondas e novas variantes como Ômicron e Delta – e quem ainda se lembra de todas as subvariantes?

“É um fenômeno de memória muito fundamental”, disse Suparna Rajaram, professora de psicologia que pesquisa a transmissão social da memória na Stony Brook University. “Até mesmo no caso dos acontecimentos emocionais e dos eventos que trazem risco de morte, quanto mais você os tem, mais difícil de guardar.”

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Mesmo Suparna Rajaram, que está conduzindo pesquisas de memória relacionadas à pandemia, disse que ela e seus colegas têm dificuldade em lembrar alguns dos eventos sobre os quais estão perguntando aos participantes.

Novas memórias, que acontecem simplesmente quando vivemos mais vida, interferem nas memórias de eventos mais antigos. Novos eventos são mais salientes e fáceis de lembrar porque temos maior probabilidade de falar sobre eles, lembrando-os repetidas vezes e os reconsolidando. O estresse, algo que a pandemia produziu em abundância, também interfere na criação de novas memórias.

Além da sobrecarga de informações, a pandemia foi monótona para as pessoas que ficaram presas em casa. “Foi praticamente a mesma coisa repetida várias vezes”, disse Dorthe Berntsen, professora de psicologia especializada em memória autobiográfica na Universidade de Aarhus.

Quando os eventos são uniformes, eles são mais difíceis de lembrar. “A memória meio que junta tudo quase como um evento só”, disse ela. “Então, acho que teremos memórias pouco claras destes anos específicos.”

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Quem quer se lembrar de uma pandemia?

Aqui está outro motivo pelo qual esquecemos: como sociedade, muitas pessoas não querem se apegar às memórias pandêmicas.

As pessoas tendem a ver o futuro de forma mais positiva do que o passado, disse Suparna Rajaram. Esse viés de positividade orientado para o futuro ocorre porque o futuro pode ser imaginado de várias maneiras em comparação com o passado, que é fixo.

É mais provável que eventos emocionalmente evocativos e dramáticos sejam mais lembrados, mas mesmo essas memórias desaparecem e se distorcem. Uma semana após os ataques terroristas de 11 de setembro, Hirst e um consórcio de pesquisadores pediram a mais de 3 mil pessoas nos Estados Unidos que relatassem suas experiências e sentimentos em relação ao acontecimento.

Quando os pesquisadores retomaram as perguntas apenas um ano depois, cerca de 40% das pessoas não haviam guardado as memórias com precisão. No entanto, continuaram “extremamente confiantes de que estavam absolutamente certas”, disse Hirst, que estuda os aspectos sociais da memória.

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O traço menos confiável de nossa memória é lembrar como nos sentimos na época.

“Se você pedir às pessoas para se lembrarem de como se sentiram nos primeiros dias após o 11 de setembro, a resposta é mais parecida com o que sentem agora do que com o que realmente sentiram nos primeiros dias”, disse Hirst.

Lembrar o passado é algo que fazemos no presente, com todas as nossas emoções, conhecimentos e atitudes de hoje. Essa realidade pode ter implicações diretas em como olhamos para trás e enfrentamos o futuro.

A covid-19 vai fazer parte da sua história de vida?

A covid afetou todo mundo, mas a marca que deixará nas nossas vidas – e, portanto, nas nossas memórias – pode variar drasticamente.

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Mais de 2 mil americanos ainda morrem a cada semana desde o terceiro aniversário dos lockdowns pandêmicos. Pelo menos 1,1 milhão de pessoas morreram nos Estados Unidos e 6,9 milhões em todo o mundo. É menos provável que os entes queridos deixados esqueçam a pandemia.

Entre os profissionais de saúde da linha de frente, muitos ainda sofrem de esgotamento ou continuam a lidar com o trauma de suportar o peso da pandemia. Pelo menos 65 milhões de pessoas em todo o mundo estão sofrendo os efeitos prolongados e muitas vezes debilitantes da covid longa.

“Eu diria que, para muitas pessoas, a pandemia será lembrada como um tipo de interlúdio cinzento”, disse Brown. “E, para outras pessoas, será um tipo de evento ou período transformador. Essas pessoas vão guardar uma memória diferente.”

Nossa memória autobiográfica é estruturada pelas transições da vida e, para muitas pessoas, a transição para a pandemia foi gradual – e a transição de volta para uma aparência de normalidade, ainda mais gradual.

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“Para realmente marcar as memórias autobiográficas, a história tem de pegar sua vida e virar de cabeça para baixo”, disse Brown.

O risco de esquecermos coletivamente mais uma pandemia

A maneira como a sociedade decidir rememorar a pandemia provavelmente afetará se e como ela vai viver na memória coletiva de nossa sociedade e o que as gerações futuras vão aprender com nossas experiências.

As famílias transmitem seus conhecimentos e a história familiar aos filhos, então essas memórias comunicativas duram apenas duas ou três gerações: podemos saber algo sobre nossas avós ou mesmo sobre nossas bisavós, mas quase nada mais distante na nossa árvore genealógica.

Sem os artefatos culturais – livros, filmes, estátuas, museus –, o mesmo pode acontecer com as memórias da pandemia, mandadas para a lixeira entrópica da história. Até agora, não há memoriais permanentes oficiais sobre a covid.

A pandemia de influenza de 1918 e 1919 infectou um terço da população mundial e matou 50 milhões de pessoas – mais do que as baixas militares da Primeira e Segunda Guerras Mundiais juntas. Mas pareceu sumir rapidamente da memória coletiva – e só foi revivida com a chegada da nossa pandemia dos dias de hoje.

“Será que a pandemia de covid-19 terá o mesmo destino e memória?”, questiona Suparna Rajaram. “Acho que, se o passado diz algo sobre o futuro, a resposta é sim”.

Mas nossa história futura ainda não está decidida. Governos e instituições têm as estruturas e os recursos intrageracionais necessários para manter vivas as memórias coletivas.

“E a questão é: será que sentimos o imperativo moral de não deixar que a história termine conosco?”, disse Hirst. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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