Cientistas brasileiros testam vacina contra cocaína: como funciona? Quais os próximos passos?

Projeto da UFMG, que teve bons resultados em animais, quer bloquear sensação de euforia causada pela droga no cérebro; especialistas veem desafios

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Por Aline Reskalla
Atualização:

As primeiras reações provocadas pela cocaína no organismo são de euforia, autoconfiança, excitação. Mas, com o uso contínuo, se transformam em depressão, irritabilidade e isolamento. É exatamente a sensação de excitação causada pela droga que a vacina Calixcoca, ainda em desenvolvimento por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pretende bloquear. O objetivo é se tornar o primeiro imunizante terapêutico específico para tratar a dependência de cocaína.

Após experiências bem sucedidas em cobaias na etapa pré-clínica, os cientistas esperam iniciar testes com humanos em 2025, assim que obtiverem o aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Calixcoca induz o sistema imune a produzir anticorpos que se ligam à cocaína na corrente sanguínea Foto: Faculdade de Medicina da UFMG

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Especialistas veem desafios para o projeto, diante da dificuldade de ter em humanos os mesmos resultados que em animais. Também citam fracassos em tentativas similares nos Estados Unidos.

No mundo, o cultivo de coca cresceu 35% entre 2020 e 2021, segundo relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. E a cocaína foi o entorpecente estimulante mais usado no período. “Dos que consomem cocaína, um em cada quatro se tornará dependente”, diz Frederico Garcia, que lidera a pesquisa.

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A expectativa é de que a vacina também funcione para o crack, produto mais barato que se espalha pelas grandes cidades e agrava o problema das cracolândias, como no centro de São Paulo.

Como funciona? Quais os resultados até agora?

Professor de Psiquiatria da UFMG, Garcia explica que a Calixcoca não é como imunizantes convencionais, produzidos a partir de uma proteína. A equipe desenvolveu, com apoio do Departamento de Química, uma nova estratégia vacinal, que utiliza molécula totalmente sintetizada em laboratório capaz de dizer ao sistema imunológico que ele deve produzir anticorpos contra a droga.

“É como se fosse uma vacina-soro”, afirma Garcia. Segundo ele, a descrição mais precisa é de “terapia de opsonização indutora de anticorpos anticocaína”, mas o grupo opta por chamá-la de vacina terapêutica. “Como é a vacina utilizada no tratamento de alergias, no qual o objetivo é modular o sistema imune para produzir anticorpos”, diz.

A molécula, nos testes preliminares, bloqueou a entrada da cocaína no cérebro, diminuindo a percepção do seu efeito e maximizando a chance de o paciente continuar em abstinência. Portanto, ele reforça, será mais eficaz para dependentes que estão no processo de interrupção do consumo.

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Segundo Garcia, a ideia não é prevenir, mas curar. “O objetivo é ser usada nos maiores centros de tratamento do mundo, proporcionando à pessoa com dependência química vida saudável.”

A vacina poderá ser utilizada em usuários de crack, uma vez que duas substâncias têm a mesma base química. Nos testes com cobaias, não foram observados efeitos colaterais graves e houve produção de anticorpos em ratos, camundongos e primatas.

Fluxo da Cracolândia no centro de SP: expectativa é de que a vacina também funcione para o crack Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO - 08/11/2023

Quais são as próximas etapas?

Se tiver aval da Anvisa, os testes da fase 1 começam em 2025, incluindo 30 a 40 voluntários. Será avaliada tanto a segurança do uso e se a vacina produz anticorpos, como ocorreu nas cobaias, além de ser definida a dose ideal. A duração prevista é de três a seis meses.

Na fase 2, o número de participantes aumenta em algumas dezenas, incluindo pacientes que têm dependência, estão internados e já em tratamento multidisciplinar, com psicoterapia, acompanhamento social e médico.

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“Vamos comparar se os que recebem a vacina têm vantagem clínica em relação ao placebo”. Se o resultado for favorável, a Anvisa pode permitir a comercialização ou exigir mais testes, replicando a fase 2 em outros grupos. “A expectativa é de concluir os registros na Anvisa em 2024, e as fases seguintes em mais um a dois anos”, acrescenta o professor.

Já são 10 anos de trabalho. Após a pandemia, quando a UFMG teve de fechar laboratórios, e cortes orçamentários nas universidades federais entre 2020 e 2022, o último ano abriu um horizonte mais promissor.

A equipe recebeu incentivos para as próximas fases. Um deles foi o Prêmio Euro Inovação na Saúde, em outubro de 2023, que rendeu visibilidade internacional e 500 mil euros (R$ 2 84 milhões) ao projeto. Mais votada por médicos de 17 países, a Calixcoca superou outras 11 iniciativas inovadoras da América Latina. A Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig), destinou mais R$ 10 milhões.

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Junto com Garcia, a reitora da UFMG, Sandra Goulart, se mobiliza junto aos governos federal e estadual em busca de verba. “As tecnologias que desenvolvemos na universidade, como a Calixcoca e SpiN-Tec (vacina anticovid, ainda em testes), além de ajudarem a combater problemas de saúde pública, irão gerar royalties importantes para a sociedade”, diz ela.

Quais as chances de dar certo? Por que é tão difícil?

A ideia de uma vacina terapêutica para tratar a dependência de drogas surgiu nos Estados Unidos há mais de três décadas, a partir da hipótese de que o próprio organismo pudesse produzir anticorpos contra substâncias como a cocaína. Apesar dos resultados promissores em ensaios pré-clínicos e de alguns ensaios clínicos iniciais, ainda não foram aprovadas vacinas antidrogas.

A comunidade acadêmica vê com cautela a possibilidade de a Calixcoca avançar para os testes clínicos. “Embora não seja tão nova assim, a ideia é muito interessante. Outros pesquisadores tentaram e ainda não conseguiram. Os maiores desafios para os cientistas da UFMG serão, primeiro, encontrar um parceiro para transformar a molécula em produto farmacêutico, e depois, verificar se funciona em humanos, se vai gerar anticorpos e por quanto tempo eles se manterão ativos”, diz Jorge Elias Kalil Filho, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). “Uma coisa é fazer efeito em animais, outra é verificar o comportamento das pessoas que tomarem a vacina. Será que, ao bloquear a entrada da cocaína no cérebro, o indivíduo poderá aumentar o consumo da droga para ter o efeito esperado?”, questiona Kalil Filho.

O psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), se diz “refratário à ideia da vacina”. “Nos Estados Unidos, gastaram alguns bilhões com um projeto nesse sentido e pararam há muito tempo. Quando passaram para testes em humanos, descobriram que a vacina não funciona mais que poucas semanas”. Ele critica o que considera “apelo midiático” da pesquisa, e diz que não há “bala de prata” para acabar com a dependência química.

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Coordenador da pesquisa da UFMG, Frederico Garcia respondeu às críticas de Laranjeira. “De fato, a vacina ainda é um objeto de pesquisa que precisa passar por uma série de estudos que validem sua segurança e eficácia. Este fato sempre reconhecemos e estamos há muitos anos pleiteando apoio para avançar neste sentido. Não será bala de prata, não é uma solução perfeita.”

O grupo da UFMG está confiante de que a Calixcoca superará a eficácia dos candidatos anteriores, principalmente em função da composição química única da vacina. “A principal distinção em nossa proposta é que a vacina não tem base proteica. O calixareno é uma substância orgânica sintética”, disse Ângelo de Fátima, professor de Química da UFMG que desenvolveu a plataforma imunogênica da vacina, a Revista Fapesp, em outubro de 2023.

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