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Como os genes ‘saltam’ entre uma espécie e outra? Cientistas investigam

Elementos genéticos chamados Mavericks têm algumas características virais e podem ser responsáveis pelo contrabando em larga escala de DNA entre espécies

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Por Saugat Bolakhe
Elementos genéticos incomuns chamados Mavericks, que podem agrupar um gene dentro de uma partícula semelhante a um vírus, parecem ter transportado um gene entre muitas espécies de lombrigas. Foto: Kristina Armitage/Quanta Magazine; fonte: Ruben Duro/Science Source

QUANTA MAGAZINE - Os biólogos entenderam os contornos das regras de herança há mais de um século: os genes são transmitidos de pais e mães para filhos dentro das espécies. Mas, nos anos mais recentes, eles também se descobriram genes que se desviam e saltam lateralmente entre as espécies – sejam genes de sapos em Madagascar que vieram originalmente de cobras, ou genes anticongelantes encontrados em peixes de água fria, como o arenque, que foram transferidos para peixes da família Osmeridae. O mecanismo que facilita essa transferência de genes ainda não está claro, mas se suspeita que os vírus desempenhem um papel central.

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Em uma nova pesquisa publicada na Science, os pesquisadores identificaram uma classe única de elementos genéticos como os agentes responsáveis pelo transporte de certos genes entre várias espécies de invertebrados simples chamados nematelmintos. O salto de um verme a outro pode não parecer muito, mas os vermes em questão se separaram muitos milhões de anos atrás, tornando-os tão diferentes no nível molecular quanto peixes e humanos. Os elementos genéticos, chamados Mavericks [algo como “independente” ou “dissidente”], foram detectados em uma ampla gama de animais, tanto invertebrados quanto vertebrados, e apresentam muitas características encontradas nos genomas dos vírus. Dadas essas propriedades, os pesquisadores suspeitam que os Mavericks – e elementos semelhantes, inclusive alguns ainda não descobertos – podem ter mediado transferências horizontais de genes ao longo da história da vida.

Enquanto bactérias, vírus e muitos protistas trocam DNA com frequência, animais multicelulares têm barreiras protetoras em torno de suas células reprodutivas que geralmente impedem a absorção de DNA alheio. Irina Arkhipova, geneticista molecular do Laboratório de Biologia Marinha em Woods Hole, Massachusetts, que não participou da pesquisa, disse que o estudo revela como “as barreiras às vezes podem ser quebradas” em algumas linhagens de animais para transferir genes.

Por esse motivo, um elemento de DNA que codifica a capacidade de transferir genes para o genoma de uma espécie completamente diferente é “uma descoberta bastante importante”, disse Sarah Zanders, geneticista do Instituto Stowers de Pesquisa Médica, que também não esteve envolvida no estudo.

O líder do grupo Alejandro Burga (à direita), sua pesquisadora de pós-doutorado Sonya Widen e seus colegas do Instituto de Biotecnologia Molecular perceberam que a composição incomum de um Maverick em lombrigas pode permitir que ele transporte genes como “carga”. Foto: Adam Cooper

Estudos anteriores de transferências horizontais muitas vezes se concentraram nos elementos genéticos móveis chamados transposões. Esses “genes saltadores” privilegiados conseguem pular pelo genoma de um organismo, replicando-se e inserindo suas cópias. Sua única preocupação é promover a própria sobrevivência dentro do genoma, em vez da adaptação do organismo – e é por isso que eles muitas vezes são categorizados como genes “egoístas”. Como os nematelmintos têm um ciclo de vida rápido e um plano corporal simples, são organismos modelo ideais para estudar esse tipo de parasitismo genético.

Alguns nematelmintos carregam um elemento genético que é tão fascinantemente egoísta que a sobrevivência da prole depende de herdar pelo menos uma cópia dele. Ele contém uma dupla de genes: um que codifica uma proteína tóxica e outro que codifica um antídoto que neutraliza a toxina. Um verme-mãe que carrega esse elemento deposita a toxina em seus óvulos. Quando os óvulos são fertilizados, apenas os descendentes que conseguem expressar o gene antídoto sobrevivem. É como se o elemento antídoto-toxina tomasse o genoma do verme como refém para garantir sua propagação.

Colando genes entre genomas

Em 2021, quando Israel Campo Bes era estudante de pós-graduação no Instituto de Biotecnologia Molecular da Academia Austríaca de Ciências em Viena, ele às vezes trabalhava até tarde na busca de genes ligados aos elementos genéticos antídotos da toxina em vários nematelmintos. Em certa noite fresca de verão, quase às 2h da manhã, ele notou algo diferente. O gene da toxina de um verme parecia quase exatamente com um gene para uma função diferente em outra espécie de verme. Eram surpreendentemente semelhantes – com quase 97% de similaridade de nucleotídeos. “Parecia que um verme havia copiado seus genes e de alguma forma os colado no genoma do outro”, disse ele.

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“Também achei bastante surpreendente”, disse Alejandro Burga, geneticista molecular sênior do laboratório. Para descobrir a origem dos elementos compartilhados, Burga e sua equipe decidiram examinar o DNA circundante. Eles identificaram sequências repetidas no DNA flanqueando os genes – uma característica dos transposões que os ajuda a pular dentro de um genoma, garantindo que as cópias inseridas mantenham a orientação correta. A equipe também descobriu material remanescente de vários genes virais: um para uma proteína envolvente do capsídeo, um que comumente ajuda na replicação viral e outro para uma “cola” que integra o DNA viral em um genoma hospedeiro.

“Foi como uma escavação arqueológica – descobrimos várias pistas”, disse Burga.

A imagem completa do genoma revelou que o gene transportador estava embutido em um conjunto de genes semelhantes a vírus e um transposão, todos os quais Burga reconheceu como constituindo um Maverick.

Mavericks são uma classe antiga e fragmentada de genes saltadores predominantes nos genomas de protistas, fungos e animais, até mesmo humanos. Esses elementos móveis maciços foram inicialmente considerados relíquias inativas de genes obsoletos. Mas pesquisas posteriores revelaram que os Mavericks podem ser reativados e mediar a transferência horizontal de genes entre algumas espécies de protistas. Mavericks completos e intactos nunca foram identificados em um organismo multicelular. Os nematelmintos, portanto, apresentaram uma rara oportunidade de estudá-los.

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O Maverick de um desses nematelmintos, no entanto, tinha um gene adicional: um gene que codifica uma proteína chamada fusogênio, a qual permite que um vírus se funda com uma célula e transfira seu genoma para ela. “Sem o fusogênio, não haveria como o vírus transferir seus genes”, disse Sonya Angeline Widen, pesquisadora de pós-doutorado no laboratório de Burga e coautora principal do novo estudo. A descoberta da proteína sugeriu fortemente que esse Maverick tinha capacidade de formar uma partícula semelhante a um vírus e invadir diferentes tipos de células.

Mavericks fazem o pouco ortodoxo

A equipe de Burga rapidamente explorou o banco de dados do genoma do nematelminto para procurar outros exemplos de genes incorporados como carga para transporte em Mavericks. Logo ficou evidente que o que eles encontraram não era um caso isolado de transferência horizontal de genes. Em mais de 100 genomas de nematelmintos abrangendo mais de 11 gêneros, duas famílias de genes foram frequentemente consideradas como carga pelas partículas Maverick e amplamente transferidas entre as espécies. Restos completos e incompletos dos elementos genéticos permearam diferentes populações de vermes em todo o mundo, da América do Norte à Índia e até uma mina de ouro de um quilômetro de profundidade na África do Sul.

Embora a evidência circunstancial sugira fortemente que esse Maverick permitiu a transferência horizontal de genes entre as espécies de nematelmintos, os pesquisadores ainda não o pegaram em flagrante. Burga e sua equipe reconhecem que seu próximo passo será encontrar uma maneira de induzir a formação de partículas Maverick semelhantes a vírus enquanto as observam sob o microscópio.

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O trabalho poderia ter um benefício prático. Muitas espécies de nematelmintos são parasitas que infectam culturas agrícolas e gado. Se os pesquisadores entenderem como os Mavericks funcionam, talvez seja possível usá-los para controlar os parasitas introduzindo genes neles.

“Não é algo que possamos fazer agora”, disse Burga, “mas espero que daqui a alguns anos”.

Há razões para acreditar que a transferência de genes usando transposões maciços pode ser mais comum na natureza. Uma pesquisa recente liderada por Aaron Vogan, da Universidade de Uppsala, na Suécia, encontrou elementos genéticos móveis massivos chamados Starships que transportam genes em várias espécies de fungos. Vogan suspeita que os Starships que transferem genes-chave entre patógenos fúngicos podem ter criado as novas cepas que causam epidemias contínuas de doenças do trigo, como a mancha marrom. As doenças causaram grandes perdas de colheitas no mundo todo desde a década de 1970, com mais de 50% de perda de colheita em casos extremos. “Portanto, entender a dinâmica das mudanças no genoma a partir dessa transferência horizontal de genes terá impactos em toda a biologia”, disse Vogan.

Os pesquisadores perceberam que os elementos genéticos do tipo transposão são “principais impulsionadores da evolução do genoma”, disse Zanders. Para realmente entender os genomas, precisamos entender esses “elementos egoístas” que conseguem pular entre as espécies, acrescentou ela. /TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

História original republicada com permissão da Quanta Magazine, uma publicação editorialmente independente apoiada pela Simons Foundation. Leia o conteúdo original em Selfish, Virus-Like DNA Can Carry Genes Between Species.

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