De bezerro clonado a miniporco transgênico: como a USP ajuda a revolucionar a pesquisa genética

Marcolino simbolizou a pesquisa com clonagem no início do século 20 no País. Atualmente, a aposta se volta a xenotransplantes a partir de animais geneticamente modificados

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Foto do author Roberta Jansen
Atualização:

Em 27 de abril de 2002, uma sexta-feira, nascia na Fazenda Panorama, em Campinas, o bezerro Marcolino, o primeiro animal clonado do Brasil. A pioneira ovelha Dolly ainda estava viva e a clonagem parecia o melhor caminho para o melhoramento animal e, mais do que isso, para a então chamada medicina do futuro. Clones humanos – que nunca chegaram a ser feitos – eram discutidos na época como eventual solução inovadora para a regeneração de órgãos e tecidos.

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O Brasil já iniciou o século 21 bem posicionado nesta corrida tecnológica, graças ao esforço de pesquisadores de universidades, como USP, que completa 90 anos neste mês. Marcolino nasceu depois de dois anos de pesquisa na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da instituição, e apenas seis anos após o nascimento de Dolly – gerada no Instituto Rosalin, na Escócia, por um grupo de pesquisadores liderados por Ian Wilmut e Keith Campbell.

Quase trinta anos depois do nascimento de Dolly, a clonagem propriamente dita avançou relativamente pouco. Mas os estudos pioneiros levaram a ciência por caminhos não imaginados na época, e igualmente importantes, como a pesquisa com células-tronco e o xenotransplante (o transplante de órgãos entre espécies diferentes).

  • A clonagem é feita a partir do núcleo (material genético) de uma célula do animal a ser clonado. Ele é colocado em um óvulo de outro animal, cujo núcleo original tenha sido previamente removido. O resultado é um animal geneticamente idêntico ao doador da célula.
  • A clonagem foi crucial para estudar as etapas do desenvolvimento embrionário. Cientistas conseguiram entender, por exemplo, como uma única célula dá origem a todos os tecidos do organismo.

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Professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da USP, Lygia da Veiga Pereira explica que até o nascimento de Dolly não se sabia que uma célula somática adulta, com função já definida, poderia ser reprogramada, se transformando em outros tipos de células.

“A grande revolução da Dolly foi mostrar que uma célula somática de identidade já definida tinha a capacidade de acessar seu genoma inteiro, voltar atrás e dar origem a um indivíduo completo”, explica Lygia. “Foi uma grande quebra de paradigma mostrar que esse núcleo, ao ser colocado em um óvulo, poderia ser reprogramado.”

A ideia original por trás da clonagem de mamíferos era, inicialmente, o melhoramento animal. Para o professor José Antônio Visintin, responsável pelo nascimento de Marcolino, o objetivo, a médio prazo, era clonar, por exemplo, as vacas que produzissem mais leite, aprimorando o rebanho.

A técnica acabou não se revelando muito eficiente: são necessários inúmeros embriões e barrigas de aluguel para gerar um clone viável.

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A ideia original por trás da clonagem de mamíferos era, inicialmente, o melhoramento animal. Na imagem, o professor José Antônio Visintin, responsável pelo nascimento de Marcolino Foto: Tiago Queiroz/Estadão

“A gente tinha um sonho que era clonar vacas de leite para, em dois ou três anos, melhorar todo o rebanho nacional”, conta Visintin. “Isso não se revelou muito viável, foram necessários, por exemplo, alguns milhões de oócitos (nome dado ao gameta feminino) de bovinos para conseguirmos um Marcolino”, afirma o pesquisador, que também atua no câmpus da USP em Pirassununga.

A longo prazo, quase no campo da ficção científica, a ideia era fazer a chamada clonagem terapêutica de seres humanos. Ou seja, produzir um embrião clonado a partir das células de uma pessoa e usar as células em seus estágios iniciais para produzir tecidos para transplantes que não levariam a rejeição de órgãos, como nos transplantes tradicionais.

A ideia de clonar um ser humano motivou acaloradas discussões éticas e até uma telenovela (O Clone, na TV Globo, em 2001), mas ficou muito longe de se tornar realidade. O avanço de outras técnicas foi crucial para que a clonagem terapêutica acabasse ficando em segundo plano.

Especialistas começaram a se perguntar se seria possível obter em laboratório uma célula indiferenciada – capaz de dar origem a todas as outras – sem a necessidade de produzir um embrião clonado.

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De fato, em 2007, uma década após a apresentação de Dolly, pesquisadores japoneses liderados por Shinya Yamanaka reprogramaram uma célula a partir da indução de genes, sem necessidade da transferência nuclear. Surgiam as células-tronco pluripotentes induzidas (IPS). Yamanaka recebeu o Nobel alguns anos mais tarde.

“Esse novo método de reprogramação celular abriu um novo caminho para a pesquisa e revolucionou a terapia celular”, afirma Lygia da Veiga Pereira.

'Foram necessários, por exemplo, alguns milhões de oócitos de bovinos para conseguirmos um Marcolino', relembra o professor Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Outro importante legado da clonagem, que promete uma nova revolução na medicina, é a criação de miniporcos transgênicos para transplante. A equipe da geneticista Mayana Zatz, do Instituto de Biociências da USP, está trabalhando na modificação genética de porquinhos para que, futuramente, seus órgãos possam ser usados para transplantes em humanos sem o risco de causar rejeição.

Mayana Zatz está à frente de pesquisa que busca alavancar os xenotransplantes Foto: Amanda Perobelli/Estadão

Até o mês que vem, prevê Mayana, a USP terá um “pig facility”, um centro para a criação dos porquinhos. “Uns seis anos atrás, o cirurgião Silvano Raia, um pioneiro no transplante de fígado entre vivos, me perguntou se a gente topava entrar nessa pesquisa”, conta a geneticista.

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Com a tendência de envelhecimento da população, as preocupações ligadas a transplantes e a filas de espera aumentam. A comunidade científica, na última década, tem focado no que chama de “órgãos adicionais”, que não são retirados de cadáveres ou voluntários. Entre as vantagens do uso de suínos, estão a fisiologia digestiva e circulatória parecida com a dos humanos.

Em 2021, nos Estados, pela primeira vez um humano recebeu um rim de porco sem que isso desencadeasse uma rejeição imediata. Depois, outros testes foram feitos.

“Sabemos há muito tempo que os órgãos dos suínos são muito semelhantes aos dos seres humanos, mas eles causam uma rejeição hiperaguda. Por isso, o xenotransplante nunca funcionou”, afirma Mayana.

“Mas com os avanços da genética, conseguimos identificar os genes específicos - são três -, que provocam a rejeição aguda e silenciá-los. Já temos embriões com os três genes desligados que agora serão implantados no útero de porcas para termos um animal geneticamente modificado doador de órgãos”, complementa a pesquisadora.

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