Aos 42 anos, Isael Bittencourt Rosa Moreno trabalhava na diretoria de um grande banco e atuava no mercado financeiro quando teve um infarto grave. Passou três meses entre a vida e a morte, mas se recuperou parcialmente. A covid-19 e uma infecção por H1N1 agravaram seu quadro, levando o paciente à fila do transplante cardíaco como prioridade.
Entre idas e vindas da UTI, Moreno morou no hospital durante meses e, quando o coração estava prestes a parar de vez, ficou ligado a uma máquina de circulação extracorpórea. Foi operado em agosto de 2022, no Instituto do Coração (InCor). Ele ainda enfrentou duas outras infecções e uma nova internação. Mas agora está recuperado.
“Depois de tantos anos, hoje tenho uma vida normal”, conta Moreno, agora com 57 anos. “Tomo remédio e cuido da alimentação, claro, mas tenho vida normal.”
Há, obviamente, uma série de variáveis que contribuem para o sucesso da cirurgia. Mas a chance de um transplantado sobreviver por pelo menos um ano após receber o novo órgão chega a 90%. E de sobreviver por pelo menos uma década supera os 70%. Nem sempre foi assim.
Referência mundial no transplante cardíaco, o Brasil foi um dos pioneiros na cirurgia por conta dos estudos desenvolvidos no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) desde o início dos anos 1960. O primeiro transplante de coração do mundo foi realizado na África do Sul, em dezembro de 1967. No Brasil, ocorreu poucos meses depois, em maio de 1968, o primeiro da América Latina.
“A verdade é que podíamos ter sido os primeiros”, lamenta, até hoje, o cardiologista Euclydes Marques, de 88 anos, que participou do primeiro transplante no País, liderado pelo médico Euriclydes Zerbini (1912-1993).
Marques foi instruído por Zerbini a desenvolver a técnica cirúrgica necessária para que a troca do coração ocorresse em relativa segurança. Para isso, realizou a cirurgia em mais de duzentos cachorros, a exemplo do que Christiaan Barnard (1922-2001) também fazia na Cidade do Cabo.
“Era uma corrida”, contou Marques. “Vários grupos em todo o mundo desenvolviam a técnica cirúrgica e se preparavam para o transplante. Todos queríamos ser os primeiros, mas as maiores apostas estavam sobre o grupo dos EUA.”
Havia também, claro, uma questão ética. Os especialistas sabiam que a cirurgia era arriscada e, por isso, só poderia ser indicada para um paciente que, não apenas não tivesse alternativa terapêutica, mas também pouco tempo de vida. Por isso, lembra Marques, os americanos protelavam.
Foi quando uma jovem com um raríssimo tumor maligno no coração apareceu no consultório de Marques. O médico tentou convencer a direção do HC a sair na frente.
“Mas o diretor da época me perguntou: ‘em quantos cachorros você fez a cirurgia?’ Respondi que em mais de duzentos. ‘Quantos sobreviveram?’, ele retrucou. Ora, nenhum. Eu estava desenvolvendo a técnica, não tentando salvá-los. Não temos UTI para tratar cachorros!”.
A despeito de também não ter salvado nenhum cão, como contaria alguns anos depois, o cirurgião Barnard, da África do Sul, foi em frente e realizou a cirurgia. O paciente sobreviveu por apenas 18 dias. Em seguida, Estados Unidos, França e Reino Unido também realizaram seus transplantes cardíacos, seguidos do Brasil.
A euforia inicial dos médicos diante da técnica que não parecia tão complicada cedeu rapidamente diante de um obstáculo intransponível naquele momento: a rejeição do órgão.
“A nefrologia já fazia transplantes de rim e sabia como combater o problema. Era um obstáculo grande, mas combatido com êxito”, explicou Marques. “Foi em conjunto com eles que estabelecemos protocolos para combater a rejeição. Mas as drogas disponíveis na época não se mostraram eficientes para o coração.”
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Diante do obstáculo e de novas técnicas de cateterismo (que remove entupimentos nas coronárias), o transplante foi posto de lado. Só no início dos anos 80 a cirurgia foi retomada com um novo medicamento para o combate à rejeição do órgão, a ciclosporina.
Houve também melhora significativa nos métodos de preservar o coração, o que permite transportar o órgão de um Estado para o outro. No início, doador e receptor tinham se ser operados simultaneamente.
“Por conta disso, o transplante ficou em certo limbo, como método de tratamento, só sendo retomado nos anos 80 com o surgimento de novos remédios contra a rejeição de órgãos”, explica o cardiologista Marcelo Jatene, do Instituto do Coração, da USP.
Ao lado do pai, o renomado cirurgião cardíaco Adib Jatene, Marcelo se voltou para o estudo de transplantes cardíacos em crianças e participou da primeira cirurgia em um recém-nascido, em 1992.
“Outro legado importante do transplante cardíaco foi estabelecer melhor o que era a morte cerebral que, até então, não tinha grande aplicação prática, mas passou a ser relevante na hora da legislação que permite a doação de órgãos, especialmente do coração”, afirmou o diretor da Divisão de Cirurgia Torácica do InCor, Paulo Pego Fernandes, vice-diretor da Faculdade de Medicina da USP. “E ainda a própria criação do InCor, pouquíssimo tempo depois do primeiro transplante cardíaco.”
Para Isael Bittencourt Moreno, o legado é, acima de tudo, afetivo. “Vejo os médicos e enfermeiros do InCor como anjos na Terra, tamanha sua dedicação com todos os pacientes.”
Inteligência Artificial
A aposta no desenvolvimento de técnicas de transplante cardíaco numa época em que a cirurgia de troca do coração estava mais para ficção científica do que para tratamento de rotina é uma marca da Faculdade de Medicina da USP. Também hoje, a universidade busca a vanguarda da pesquisa médica.
No Hospital das Clínicas, o grupo do radiologista Bruno Aragão Rocha já usa a inteligência artificial para diagnosticar tumores cancerígenos.
“O padrão-ouro do diagnóstico de câncer em exames de imagem ainda é o olho humano”, explicou o radiologista Rocha, da Faculdade de Medicina da USP, que desenvolveu, em seu doutorado, uma IA para o diagnóstico de tumores do fígado. Mas a IA faz uma triagem dos casos e sinaliza os mais suspeitos para que o médico veja primeiro”, continua ele. A tecnologia desenvolvida por Rocha já está sendo adaptada para outros tipos de tumores.
Segundo especialistas, a inteligência artificial pode ter múltiplas aplicações na área, como também prever a necessidade de quimioterapia para remover um tumor ou a sobrevida de um paciente oncológico. “Quem quer inovar precisa arriscar, transgredir a normalidade”, afirmou Marques. “Essa é a grande lição que fica do transplante de coração.”
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