THE WASHINGTON POST — Em uma entrevista coletiva inflamada no hotel Four Seasons de Baltimore (EUA), oradores chamaram as mudanças climáticas de um embuste perpetrado por uma “conspiração global” que inclui as Nações Unidas, o Fórum Econômico Mundial e muitos líderes da Igreja Católica. O evento poderia ter soado extremista de imediato, não fosse pelas credenciais de um dos oradores. John Clauser, um dos ganhadores do Nobel de Física no ano passado, declarou na terça-feira que “não há nenhuma crise climática” — afirmação que contradiz o amplo consenso da comunidade científica.
O evento marcou a notável mudança de Clauser desde que ele foi laureado com um dos prêmios mais prestigiosos do mundo por seus experimentos pioneiros com partículas de luz nos anos 1970. Seu recente negacionismo em relação ao aquecimento global alarmou os mais importantes cientistas estudiosos do clima, segundo os quais Clauser usa sua estatura para enganar o público a respeito de uma emergência planetária.
Clauser, de 80 anos, que tem uma voz retumbante e cabelos brancos que ele deixa despenteados, rejeitou essas preocupações. Segundo ele, o ceticismo é parte fundamental do processo científico.
“Houve um consenso esmagador sobre eu estar fazendo algo sem sentido” nos anos 1970″, afirmou ele após a coletiva de imprensa. “Levou 50 anos para o meu trabalho ganhar o prêmio — é o tempo que leva para as opiniões mudarem.”
O evento da terça-feira foi organizado pela Coalizão Depósito da Fé, grupo que reúne mais de uma dúzia de organizações católicas e argumenta que “quem apoia a agenda climática anti-Deus e antifamília precisa ser denunciado e exposto”. Clauser, que é ateu, precisou ser convencido a aceitar a função de orador principal, reconheceu um porta-voz da coalizão.
Os outros palestrantes incluíram Marc Morano, ex-funcionário de gabinete congressional republicano que administra um site que rejeita as ciências climáticas do mainstream, e Alex Newman, jornalista que trabalha para meios de imprensa de direita e conclama o combate ao “embuste climático”. Ambos criticaram em vários momentos o ex-vice-presidente Al Gore e seu documentário de 2006 sobre os perigos das mudanças climáticas.
Clauser, que trajou blazer cinza, jeans pretos e sandálias Teva, mostrou-se radiante quando subiu no palco. Ele exibiu uma apresentação de PowerPoint que começou com a exclamação: “Ótimas notícias! A crise climática não existe!”.
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“Apesar de poder irritar muita gente, minha mensagem é que o planeta não está em risco”, disse Clauser a cerca de uma dúzia de ouvintes em uma sala de conferência do hotel, além de uma plateia online. “Eu chamo a mim mesmo de negacionista climático”, acrescentou ele.
Clauser gabou-se de ter se encontrado privadamente com o presidente Joe Biden no Salão Oval no ano passado, quando os vencedores do Nobel de 2022 foram recebidos na Casa Branca. Clauser afirmou que criticou as políticas climática e energética de Biden, ao que, segundo ele, o presidente teria respondido: “Parece ciência de direita”.
O The Washington Post não conseguiu confirmar o relato; um porta-voz da Casa Branca não respondeu imediatamente a um pedido de comentário.
A vasta maioria dos cientistas climáticos concorda que o aquecimento global surtirá consequências catastróficas sobre a atual e as futuras gerações; alertam que ondas de calor, crises de fome e doenças infecciosas poderão causar milhões de mortes até o fim do século se a humanidade não reduzir rapidamente as emissões resultantes da queima de combustíveis fósseis.
A influência dos negacionistas em relação às mudanças climáticas diminuiu ao longo das décadas recentes, conforme os dados científicos ficaram mais evidentes e os impactos do aquecimento global se agravam. Mas um pequeno grupo de céticos ruidosos — incluindo vários físicos proeminentes — persiste.
Clauser, que nunca publicou nenhum artigo revisado por pares a respeito das mudanças climáticas, aponta para uma mensagem em particular: a temperatura da Terra é determinada pela cobertura das nuvens, não por emissões de dióxido de carbono oriundas da queima de combustíveis fósseis. Ele concluiu que as nuvens são responsáveis por um efeito de resfriamento sobre o planeta, portanto não há crise climática.
O cientista climático Michael Mann, da Universidade da Pensilvânia, afirmou que esse argumento é “lixo puro” e “pseudociência”. A “melhor evidência disponível” mostra que as nuvens na realidade surtem um efeito de aquecimento, disse Mann por e-mail. “Na Física, chamamos isso de ‘erro de sinal’, o tipo de erro no qual até um calouro fica envergonhado de ser flagrado.”
O professor de ciências atmosféricas Andrew Dessler, da Universidade Texas A&M University, concordou. “As nuvens amplificam o aquecimento”, disse Dessle, acrescentando, “A comunidade científica passou o século recente estudando (as mudanças climáticas) e, neste ponto, virtualmente tudo o que está acontecendo foi previsto. John Clauser e sua laia ignoram isso porque não avançam com críticas sérias.”
Mas o físico austríaco Anton Zeilinger, que dividiu o Nobel com Clauser no ano passado, disse em entrevista que tem “o mais alto respeito” pelo rigor científico de Clauser, mas fez a ressalva de que ele não é especialista em ciências climáticas.
Em 1972, Clauser conduziu experimentos pioneiros no campo do entrelaçamento quântico, processo em que duas ou mais partículas conectam-se de forma que qualquer mudança em alguma delas desencadeia mudança na outra, mesmo que elas estejam separadas por vastas distâncias.
Os experimentos confirmaram um fenômeno ao qual Albert Einstein referiu-se famosamente como “ação fantasmagórica à distância”. E também pavimentaram o caminho para tecnologias como computadores quânticos, capazes de resolver problemas complexos demais para os computadores clássicos.
“Quando propôs suas ideias, Einstein foi considerado louco e outsider”, afirmou Zeilinger, professor emérito de física da Universidade de Viena. “Já aconteceu na ciência a vasta maioria estar absolutamente errada. Não tenho ideia se este é o caso aqui, mas a ciência tem de estar aberta ao debate.”
Alguns físicos fizeram contribuições cruciais para o entendimento do mundo sobre as mudanças climáticas. Em 2021, os cientistas Syukuro Manabe, dos Estados Unidos, e Klaus Hasselmann, da Alemanha, foram laureados com o Nobel de Física por um estudo que estabeleceu os fundamentos dos modelos climáticos atuais.
Outros fizeram nome por ser do contra.
William Happer, professor emérito de Física da Universidade Princeton, tem argumentado que o aquecimento global é bom para a humanidade. Happer serviu como diretor sênior no Conselho de Segurança Nacional do governo do ex-presidente Donald Trump, onde coordenou uma iniciativa controvertida de reformulação do entendimento do governo sobre as ciências climáticas.
Richard Lindzen, físico aposentado do MIT, também critica o que chama de “alarmismo climático”. E o físico Steven Koonin, que serviu como subsecretário do Departamento de Energia no governo de Barack Obama, escreveu o best-seller Unsettled: What Climate Science Tells Us, What It Doesn’t, and Why It Matters (Inquieto: O que a Ciência Climática nos ensina, o que não ensina, e por que isso importa).
O pesquisador Nadir Jeevanjee, da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA), afirmou que, ainda que as ciências climáticas tenham a Física como base, nem todos os físicos são especialistas em ciências climáticas. Mas isso não impediu alguns físicos proeminentes de retratar a si mesmos como especialistas e semear dúvidas, afirmou ele.
“Quando falamos, as pessoas escutam”, afirmou Jeevanjee, que enfatizou estar falando em nome de si mesmo, não da NOAA. “Isso atiça as chamas do negacionismo.”
Alguns físicos que rejeitam o consenso científico sobre as mudanças climáticas receberam financiamento de empresas de combustíveis fósseis. O astrofísico Wei-Hock “Willie” Soon, que atribui a causa maior do aquecimento global a variações na energia do sol, recebeu mais de US$ 1,2 milhão da indústria dos combustíveis fósseis entre 2005 e 2015, sem revelar esse conflito de interesses na maioria de seus artigos científicos.
Clauser afirmou que não recebe nenhum dinheiro de empresas de petróleo, gás natural ou carvão mineral.
“Se viajo para a Ásia, eu recebo fartos honorários por dar palestras”, afirmou ele em entrevista após o evento da terça-feira. “Mas esta conferência não me pagou para estar aqui. O máximo que eu ganho é a passagem aérea e a estadia no hotel. Eu estou vivendo das minhas economias.”
Em junho, Clauser foi o principal palestrante de uma conferência sobre física quântica em Seul e disse aos espectadores, “Eu não acredito que exista uma crise climática”. A fala ocorreu um mês depois dele aderir à direção da Coalizão CO2, um grupo que sustenta que o dióxido de carbono é benéfico para o planeta.
Clauser não tem sido bem recebido em toda parte. Em julho, ele tinha marcado um seminário sobre modelos climáticos no Escritório de Avaliação Independente do Fundo Monetário Internacional, mas, segundo um comunicado em emitido pela Coalizão CO2 na época, o evento foi “cancelado sumariamente”.
Na terça-feira, Clauser afirmou que foi informado inicialmente que o evento seria reformatado como um debate com o autor de um relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU. Mas a ideia “não foi adiante”, afirmou ele.
A reportagem pediu a um porta-voz do painel um posicionamento oficial e perguntou se o evento seria reagendado, mas não obteve resposta.
A mensagem de Clauser também pode estar alcançando uma audiência limitada. Entre a cerca de uma dúzia de pessoas presentes na conferência de imprensa em Baltimore, duas eram jornalistas e várias outras pertenciam à Coalizão Depósito da Fé.
Questionado sobre a plateia diminuta, Clauser, que tem enfisema pulmonar por fumar tabaco desde a juventude, tragou seu inalador e deu de ombros. “Eu recebo uma quantidade razoável de mensagens de fãs, algumas de indivíduos que afirmam ser cientistas climáticos”, disse ele. “A maioria muito positiva.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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