Em 1677, um cientista chamado Antoine van Leeuwenhoek, colocou uma gota de sêmen no microscópio que havia construído e ficou horrorizado ao ver milhões de micro peixes batendo seus rabinhos. Seriam aqueles os seres responsáveis por engravidar as mulheres? Ele acabara de descobrir os espermatozoides. Na carta que enviou à Royal Society de Londres descrevendo a descoberta, pediu perdão por descrever algo tão nojento e escandaloso e sugeriu que a informação fosse mantida em segredo ou que a carta fosse destruída.
A carta não foi destruída e, logo depois, foi descoberto o óvulo. Não demorou muito para os cientistas descobrirem que todos os animais se originam de uma única célula, produto da fusão de um óvulo com um espermatozoide. Essa nova célula, capaz de dar origem a um animal completo, como um sapo ou elefante, recebeu o nome de ovo.
Por ser capaz de gerar todos os tipos de células presentes em um ser vivo, foi chamada de célula totipotente ou célula-tronco. Um ovo de galinha, quando galado (fecundado), tem uma dessas células entre a clara e a gema. É ela que vai dar origem ao pintinho (o comprado no supermercado geralmente não é galado).
Por muito tempo, se acreditava que as células totipotentes eram especiais, mas em 1958 um inglês chamado John Gurdon pegou um ovo de sapo e, usando um minúsculo tubo, retirou de dentro dele seu núcleo. Como o núcleo de uma célula possui seu DNA, portanto toda a informação necessária para o ovo se transformar num novo sapo, os ovos submetidos a esse procedimento simplesmente morriam.
Mas ele foi adiante, retirou o núcleo de uma célula da pele do sapo (uma célula incapaz de produzir um novo sapo) e injetou esse núcleo num dos ovos sem núcleo. E kabum: a célula resultante gerou um sapo inteirinho. Ou seja, Gurdon havia demonstrado que uma célula da pele, incapaz de produzir todo um sapo, tinha a informação necessária para ser transformada em uma célula totipotente.
Isso abriu a possibilidade de criarmos células totipotentes sem fundir espermatozoide e óvulos, o que vem sendo feito desde então. Foi descrevendo esse experimento que outro inglês, Peter Medawar, usou pela primeira vez a palavra clone para se referir à copia de um animal (o sapo resultante era um clone do sapo que doou o pedaço de pele).
Por esse experimento, Gurdon recebeu o prêmio Nobel em 1972. Desde então, os cientistas têm investigado o funcionamento e a utilidade das células-tronco. Em teoria, elas podem ser usadas para regenerar órgãos danificados ou mesmo produzir órgãos inteiros para transplantes. Poderíamos, por exemplo, usar uma célula-tronco isolada de uma paciente para produzir um novo rim ou reconstituir um coração enfartado.
Por enquanto, nada disso está disponível, mas é um campo em plena efervescência. A novidade é que agora foi dado um passo enorme no uso de células-tronco humanas para estudar como nossos embriões se desenvolvem. Apesar de conhecermos bem como os embriões de camundongos se desenvolvem, o mesmo não é verdade para embriões humanos.
A principal razão são os impedimentos práticos e éticos. Enquanto podemos matar um camundongo fêmea para retirar o embrião e estudar seu desenvolvimento, isso é impossível em humanos. Em animais, também é possível produzir e cultivar embriões fora do corpo para acompanhar seu desenvolvimento. No mundo todo, e com razão, o estudo de embriões humanos é muito limitado.
No Brasil, embriões produzidos por fecundação assistida podem ser doados, mas essas doações são raras e seu uso limitado. O resultado dessas limitações é que sabemos muito pouco sobre os detalhes das fases iniciais da embriologia humana.
O que os cientistas fizeram agora foi combinar três tipos de células-tronco originadas de seres humanos, e, utilizando diversos meios de cultura, conseguiram que essas células se agrupassem e se desenvolvessem, formando verdadeiros embriões humanos.
Esse é um feito tecnológico enorme. Os embriões não só possuem os componentes do embrião que vão formar as diferentes partes do corpo, mas também os tecidos que circundam o embrião, como o saco amniótico e a placenta.
Esses embriões, criados totalmente fora do corpo humano, sem o uso de óvulos ou espermatozoides, foram estudados até o estágio que corresponde a duas semanas após a fecundação. Nesse estágio, numa gravidez normal, o embrião já está preso no útero.
Os autores do estudo afirmam que esses embriões podem ser usados para estudar as primeiras fases da embriologia humana, pois não estão submetidos as regras que protegem embriões humanos produzidos a partir de óvulos e espermatozoides.
Do meu ponto de vista, isso é uma espécie da autoengano. Afinal, se esses embriões de fato mimetizam o desenvolvimento de uma pessoa, o que deve ocorrer se eles forem implantados no útero de uma mulher? Caso se desenvolvam e deem origem a uma criança,, eles deveriam ser tratados, do ponto de vista ético, como os outros embriões.
Por outro lado, se forem inviáveis, não são modelos realísticos para estudarmos a embriologia humana. Esse é um experimento que nunca será feito. Que mulher aceitaria ceder seu útero? Essa descoberta é um passo importante, mas não resolve o dilema ético primordial, que é definir quando um embrião humano deve usufruir os direitos legais de um ser humano.
É esse o debate que cerca o problema da legalização do aborto. Ninguém discute que aos 8 meses de gestação o feto já é um ser humano. Mas quando um embrião se transforma em ser humano? Antes da descoberta dos espermatozoides e óvulos, se acreditava que essa transformação ocorria no parto, quando a alma entrava no corpo com o primeiro gole de ar (e deixava o corpo no último suspiro).
Com a descoberta da fecundação, a Igreja adotou a postura que a pessoa surge no ato da fecundação. Nos países que permitem o aborto a visão é que um embrião só se transforma em pessoa com o desenvolvimento do sistema nervoso, por volta das 12 semanas de gestação.
Mais informações: Complete human day 14 post-implantation embryo models from naïve ES cells. Nature https://doi.org/10.1038/s41586-023-06604-5 2023
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