SÃO PAULO - Faltando menos de duas semanas para o início da Copa do Mundo no Brasil, as expectativas e o entusiasmo do público com relação à demonstração do projeto Andar de Novo, que o neurocientista Miguel Nicolelis fará na abertura do evento, só aumentam. A curiosidade e as dúvidas da comunidade científica com relação ao que vai ser demonstrado, também.
O script da apresentação vem sendo anunciado há mais de dois anos. Antes de a bola começar a rolar nos pés de Neymar, Hulk e companhia, às 17 horas do dia 12 de junho, um brasileiro paraplégico deverá se levantar, caminhar sobre o gramado da Arena Corinthians, chutar uma bola de futebol e marcar "um golaço para a ciência brasileira", nas palavras de Nicolelis.
Para isso, usará uma veste robótica controlada pelo cérebro, desenvolvida ao longo dos últimos anos pelo neurocientista brasileiro em seu laboratório da Universidade Duke, nos Estados Unidos, em colaboração com pesquisadores no Brasil e de vários países. A função do exoesqueleto, ou robô, será fazer o que o sistema nervoso do seu usuário perdeu a capacidade de fazer: transmitir os comandos de "mova-se" do cérebro até as pernas, só que utilizando, no lugar da medula espinhal, um sistema de "interface cérebro-máquina" (ICM) capaz de decodificar a atividade elétrica dos neurônios e traduzi-la em sinais eletrônicos digitais, compreensíveis a um robô. Cliquei aqui para ver infográfico.
Resultado: o cérebro dá a ordem, o computador faz a ligação, e quem se move é o robô - levando a pessoa com ele. Uma tecnologia que, segundo Nicolelis, promete transformar as atuais cadeiras de rodas em "peças de museu".
Procurado pela reportagem, Nicolelis não quis dar entrevista. Em suas páginas no Facebook e no Twitter o neurocientista já postou vídeos de pessoas caminhando e garante que está tudo funcionando bem para a apresentação da Copa. "Todos os objetivos científicos, clínicos e tecnológicos do projeto já foram alcançados com grande sucesso", informou sua assessoria de imprensa.
O exoesqueleto vem sendo testado desde março por oito pacientes da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) em São Paulo, mas apenas um deles será escalado para andar na Arena Corinthians. Procurada pelo Estado, a AACD declinou de falar sobre o assunto, justificando que só Nicolelis poderia dar informações sobre o projeto. Segundo a assessoria do cientista, os oito pacientes que participaram dos testes têm entre 20 e 40 anos, com paralisia completa do membros inferiores. Todos eles, segundo o comunicado, controlaram o exoesqueleto com sucesso e deram cerca de 120 passos cada.
Nas redes sociais, a admiração e o apoio do público ao projeto são imensos. "Fantástico"; "Emocionante"; "Melhor investimento da Copa"; "Orgulho de ser brasileiro"; "Nicolelis é gênio"; "Nobel para ele"; são exemplos de comentários que povoam cada post de Nicolelis no Facebook.
O projeto é apoiado pelo governo federal, que no ano passado deu R$ 33 milhões para a construção do protótipo que será exibido na Copa. "Nossa expectativa é a melhor possível", disse ao Estado o sociólogo Glauco Arbix, presidente da Finep, agência de fomento ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que repassou os recursos. "É um dos projetos mais importantes que temos hoje na área de desenvolvimento científico e tecnológico. Torcemos e fazemos todo tipo de esforço para que dê certo."
Arbix acompanhou alguns dos testes realizados por Nicolelis na AACD e relatou a sensação de ver os pacientes caminhando com o exoesqueleto. "Os resultados são muito fortes; muito emocionantes", disse.
Outro cientista que se impressionou com os resultados foi o médico-geneticista Francis Collins, presidente dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH), órgão do governo americano que financiou boa parte das pesquisas com interface cérebro-máquina desenvolvidas por Nicolelis na Universidade Duke nos últimos 15 anos. "A tecnologia é realmente incrível", disse Collins em uma palestra em São Paulo no dia 22, depois de visitar o laboratório de Nicolelis. "Fiquei muito impressionado com o que vi."
"É um projeto de altíssima importância científica", disse ao Estado o ministro de Ciência e Tecnologia, Clelio Campolina Diniz, que também visitou o laboratório. "A neurociência do Brasil está dando um grande salto."
Desconforto. Por outro lado, há um desconforto em vários setores da comunidade científica nacional com relação ao projeto e à maneira como ele será apresentado. Muitos pesquisadores desaprovam a maneira midiática que Nicolelis utiliza para divulgar suas pesquisas - neste caso, antes mesmo de ter um trabalho publicado para comprovar a validade científica dos resultados que pretende apresentar. Poucos, porém, estão disposto a falar sobre o assunto.
Ao contrário do que ocorre entre o público leigo, Nicolelis e sua ciência são tratados como tabu por grande parte da comunidade científica.
Procuradas pela reportagem para falar sobre o projeto, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) preferiram não se pronunciar, assim como o Hospital Sírio-libanês, onde Nicolelis manteve um laboratório durante seis anos (de 2005 a 2011). Vários especialistas internacionais na área de interface cérebro-máquina procurados pelo Estado também declinaram de falar sobre o projeto.
"O uso de demonstrações públicas para divulgar a ciência tem certa tradição na ciência ocidental, especialmente se feitas com o intuito de motivar a juventude para a ciência. Por outro lado, a realização desta demonstração em um evento esportivo de grande visibilidade criará grandes expectativas e responsabilidades para o estado brasileiro e a ciência nacional", limitou-se a dizer a Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC).
Pesquisadores estão ansiosos para saber qual será o conteúdo científico da demonstração da Copa, visto que Nicolelis, apesar de sua vasta experiência em pesquisas com interface cérebro-máquina, não possui nenhum trabalho publicado com seres humanos que sirva como referência para o que vai ser demonstrado no dia 12. "O padrão na ciência é ter resultados publicados em revistas com revisão por pares antes de apresentá-los ao público", comentou um pesquisador da área. "Até onde eu sei, esse grupo não tem nenhum trabalho publicado sobre locomoção com seres humanos."
Segundo a assessoria de imprensa do projeto, os resultados dos testes clínicos realizados com os pacientes da AACD "serão apresentados à comunidade científica por meio de publicação em revistas especializadas nos próximos meses".
A principal dúvida científica refere-se a quanto do movimento do exoesqueleto será controlado diretamente pelo cérebro do paciente versus pelo próprio robô. "Funciona como um controle compartilhado, em que o cérebro gera mensagens que expressam o desejo voluntário motor do operador, como 'eu quero andar', 'eu quero parar', 'eu quero chutar a bola'. Esses comandos mentais interagem com os controles das articulações do exoesqueleto para fazer com que os movimentos sejam gerados", informou a assessoria do projeto.
O ineditismo tecnológico de uma interface desse tipo - em que o cérebro funcionaria, essencialmente, para ligar e desligar movimentos pré-programados no robô - seria pequeno, na opinião de alguns pesquisadores. Sistemas de interface cérebro-máquina baseados em eletroencefalografia (EEG) já são usados experimentalmente há anos para execução de tarefas simples, como operar teclados digitais, controlar cadeiras de rodas elétricas e até para "pilotar" pequenas aeronaves não tripuladas (drones). Neste caso, segundo os críticos, a demonstração da Copa se configuraria mais como uma exibição de robótica do que de neurociência.
Para Glauco Arbix, da Finep, trata-se de uma "discussão bizantina". "Se eu sou paraplégico ou tenho um filho paraplégico, e o robô me permitir andar normalmente, vou ficar muito feliz. Se eu tomo a decisão de andar e ele anda, ótimo", avalia.
Made in Brazil? Outra crítica frequente ao projeto é que Nicolelis, apesar de ser brasileiro, não representa a ciência brasileira, já que suas pesquisas com interface cérebro-máquina são desenvolvidas majoritariamente nos Estados Unidos, com dinheiro americano; e o exoesqueleto, apesar de ter sido pago com dinheiro brasileiro, foi praticamente todo desenvolvido e construído fora do País, sob a liderança do engenheiro de sistemas Gordon Cheng, especialista em "robótica humanoide" da Universidade Técnica de Munique, na Alemanha.
Arbix rebate a crítica, argumentando que o que mais importa é o cérebro de quem concebe o projeto, e não onde suas peças são construídas. "Seria o mesmo que dizer que um avião da Embraer não é brasileiro porque seus motores são fabricados pela GE (nos Estados Unidos)", compara. "É um projeto da ciência brasileira, sem dúvida. Estamos na fronteira da geração do conhecimento, e isso é o que importa. Há pouquíssimas áreas no Brasil em que se pode dizer isso, e essa é uma delas."
O projeto Andar de Novo existe desde 2004. O convênio de R$ 33 milhões com a Finep, destinado à construção do protótipo e à realização dos testes clínicos com o exoesqueleto que será demonstrado na Copa, foi assinado em dezembro de 2012 e termina agora, em junho.
Nicolelis não informou o que pretende fazer com o exoesqueleto depois da Copa: se ele continuará a ser desenvolvido no Brasil (em São Paulo ou Natal) ou será levado para o seu laboratório nos Estados Unidos, ou o de Gordon Cheng na Europa. Também não informou se os pacientes que participaram dos testes na AACD continuarão a ter acesso à tecnologia nas próximas etapas do projeto. Nem explicou porque optou por montar um novo laboratório em São Paulo, em vez de aproveitar as instalações do seu Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), na capital do Rio Grande do Norte, que é a instituição de referência para sua produção científica no Brasil e que recebeu milhões de reais em investimentos públicos para compra de equipamentos e montagem de infra-estrutura nos últimos dez anos.
O valor investido na construção do protótipo chama a atenção pela grandiosidade. É de três a dez vezes maior do que o valor que qualquer um dos 37 Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) da área de saúde recebeu do CNPq nos últimos cinco anos, por exemplo. E R$ 13 milhões maior do que o valor total do último edital lançado pela Finep para o desenvolvimento de tecnologias de auxílio a deficientes (de R$ 20 milhões), que deverá beneficiar dezenas de projetos em todo o País.
"Não tem como fazer ciência de fronteira sem uma grande massa de investimento. Pesquisa de ponta custa caro, não tem jeito", defende o ministro Campolina, que assumiu a pasta há três meses. As críticas, segundo ele, são uma parte natural do processo científico. "Qualquer pesquisa em qualquer lugar do mundo é questionada; caso contrário não seria ciência."
A expectativa para o futuro, segundo o presidente da Finep, é que o desenvolvimento tecnológico e industrial do exoesqueleto ocorra no Brasil, liderado por empresas brasileiras. "Esse ponto da continuidade é muito importante", afirma Arbix. "Temos uma oportunidade muito grande, não só de nos consolidarmos como um polo científico, mas também de abrir portas para uma série de segmentos industriais" - por exemplo, na área de desenvolvimento de novos materiais para serem usados no exoesqueleto. O protótipo, diz ele, "é apenas o primeiro passo numa caminhada que ninguém andou até agora".
** Clique aqui para ler a prestação de contas do projeto
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