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Opinião | O beija-flor vive perigosamente e a explicação está no metabolismo; entenda

Basta um dia sem achar comida para o animal que consome mais energia por minuto morrer

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Foto do author Fernando Reinach

Os beija-flores, além de lindos, são um fenômeno do ponto de vista metabólico. Para voar sem mudar de lugar, geralmente sugando néctar nas flores, eles batem as asas até 88 vezes por segundo. É tão rápido que não conseguimos ver as asas, só escutamos o ruído que as penas fazem ao vibrar em contato com o ar.

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Bater asas nessa velocidade exige muita energia e por isso o metabolismo de um beija-flor é extremamente alto. Seu coração bate até 1.260 vezes por minuto (contra aproximadamente 60 a 120 vezes de um ser humano) e ele respira 250 vezes por minuto. Tudo para conseguir transportar uma quantidade suficiente de oxigênio para os músculos, que oxidam açúcares 10 a 12 vezes mais rápido que os melhores atletas humanos. Por grama de peso, os beija-flores são os animais que consomem mais energia por minuto.

Para conseguir esse feito, os beija-flores precisam ser pequenos. Um animal maior precisaria ingerir uma quantidade enorme de alimentos para manter esse ritmo metabólico e teria dificuldade em dissipar o calor gerado. Os beija-flores, que pesam entre 2 e 20 gramas, conseguem toda a energia no néctar das flores, apesar de também comerem pequenos insetos.

Por serem pequenos e leves, eles praticamente não acumulam energia em forma de gordura e vivem cada dia com o alimento que obtém no mesmo dia. Para economizar energia de noite, ou quando estão pousados, entram em uma espécie de torpor que reduz seu metabolismo em até 10 vezes. A vida de um beija-flor é arriscada, basta um dia sem achar comida para morrerem.

Uma característica dos beija-flores que intrigava os cientistas é o pouco tempo entre a ingestão do açúcar na forma de néctar e sua oxidação nos músculos. Enquanto a maioria dos seres vivos leva de 3 a 5 horas para disponibilizar aos músculos o açúcar ingerido, os beija-flores fazem isso em 30 minutos. Agora esse mistério foi resolvido.

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O coração de um beija-flor bate até 1.260 vezes por minuto (contra aproximadamente 60 a 120 vezes de um ser humano) e ele respira 250 vezes por minuto. Foto: Arnulfo Franco/AP

Genoma

Os cientistas sequenciaram o genoma de um beija-flor e compararam com o genoma dos pássaros mais próximos. Esses dois ramos da família dos pássaros se separaram faz 43 milhões de anos. O que descobriram é que nos beija-flores não existe uma enzima chamada frutose bifosfatase 2 (FBP2). Em todos os outros seres vivos, essa enzima está presente e tem uma função muito importante.

Via de regra, nossos alimentos são de dois tipos: açúcares e gorduras (lípides). Esses dois tipos de moléculas são degradados por caminhos metabólicos distintos. Um degrada açúcar, o outro, lípides. Mas essas duas vias se encontram em uma terceira via, chamada de ciclo de Krebs. A partir desse ponto, elas se juntam e as duas fontes de alimento se combinam e produzem uma mesma molécula chamada ATP.

É o ATP que é usado como energia pelos músculos. Essas vias em forma de Y podem caminhar também em reverso. Assim, quando ingerimos açúcar, ele pode ser transformado em gordura, ou quando ingerimos lípides ele pode ser transformado em açúcar. Ou seja, esses dois tipos de moléculas são interconversíveis: o açúcar que desce por um lado do Y pode subir pelo outro lado e virar gordura (é por isso que açúcar engorda). E o contrário também ocorre, a gordura que desce pelo outro lado pode ser transformada em açúcar (é o que ocorre quando deixamos de comer açúcar). Esse sistema de duas vias é que nos permite comer somente um ou outro alimento.

A enzima FBP2 é essencial para que o açúcar seja produzido a partir de outro alimento como os lípides. É ela que está ausente nos beija-flores. Sem essa enzima, o braço do Y que leva o açúcar para o ciclo de Krebs só funciona em uma direção, destruindo o açúcar. O beija-flor não consegue operar a via na outra direção, sintetizando açúcar a partir de outro alimento.

Como o beija-flor se alimenta de néctar, que é um caldinho de açúcar, ele não precisa sintetizar açúcar. E se precisar, morre, pois não possui essa via metabólica. Essa perda de flexibilidade tem uma vantagem: a degradação do açúcar ocorre muito mais rápido. E é isso que garante que o açúcar coletado em uma flor possa chegar rapidamente, na forma da energia, nos músculos das asas.

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Para ter a vantagem de usar o alimento rapidamente, o beija-flor abriu mão da possibilidade de se alimentar de lípides e gorduras. É uma aposta arriscada, eles abrem mão de um alimento para utilizar o outro de maneira rápida. Essa é mais uma característica que faz com que os beija-flores vivam perigosamente. Mas essa vida na beira do colapso é uma característica que parece valer a pena: os beija-flores estão no planeta faz 42 milhões de anos.

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Mais informações: Loss of a gluconeogenic muscle enzyme contributed to adaptive metabolic traits in hummingbirds. Science 2023.

Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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