EXCLUSIVO PARA ASSINANTES

Opinião | Caminhar na natureza: por que só a biofilia pode salvar a humanidade?

Se todos os seres humanos pudessem caminhar diariamente por uma hora no mundo natural, como faziam nossos ancestrais, é possível que a biofilia ressurja e melhore o mundo

PUBLICIDADE

Foto do author Fernando Reinach

Semanas atrás caminhei com um grupo de amigos de Leon até Santiago de Compostela, na Espanha. Foram 230 quilômetros, percorridos em 10 dias, caminhando quase 10 horas por dia. A trilha, percorrida por peregrinos desde o ano 800, é fácil apesar de longa. Ela passa por montanhas, florestas, campos de girassóis e lavanda. Abundam flores e árvores centenárias. Bem demarcada, você nunca se perde e sempre encontra um local para descansar e tomar um suco de laranja.

PUBLICIDADE

Essas características propiciam um andar relaxado, onde a mente corre solta, de uma forma diferente de quando devaneia sentada numa cadeira olhando o teto. É uma imersão completa na paisagem natural. O prazer aumenta ao longo dos dias e nos distancia gradativamente da vida nas cidades. Longas caminhadas faziam parte do modo de vida de nossos ancestrais. Isso só mudou com o surgimento das vilas e cidades.

Desde então deixamos de vagar ao léu catando frutas e raízes e comendo a caça ocasional. Nas cidades, aos poucos, perdemos o contato direto com a natureza.

Longas caminhadas faziam parte do modo de vida de nossos ancestrais. Isso só mudou com o surgimento das vilas e cidades Foto: Susana Vera/REUTERS

Caminhar faz parte do passado distante de nossa espécie. Os hominídeos já existiam 2 milhões de anos atrás e nossa espécie surgiu faz somente 250 mil anos. Durante mais de 99% de nossa história biológica vivemos vagando à busca de comida e caça, caminhando como caminhei, dia após dia, totalmente envolvidos pela natureza.

Foi somente nos últimos 15 mil anos, com o advento da agricultura, que paramos de andar e nos fixamos nas cidades. Somos uma espécie de andarilhos recém trancafiados nas cidades, agora isolados da natureza. Durante centenas de milhares de anos sobreviveram os que se entendiam com a natureza, aqueles que sabiam onde estava o alimento, respeitavam os animais e conheciam a botânica. Sobreviveram os amigos dos seres vivos.

Publicidade

Biofilia é o termo cunhado pelos cientistas para descrever nossa relação de afinidade com os seres vivos e nosso desejo de harmonia com o ecossistema. Grande parte dos cientistas acredita que a biofilia faz parte de nossa herança genética, pois só os possuidores dessas características teriam logrado sobreviver por milhões de anos.

Em todas as culturas, o homem gosta de estar em ambientes com horizontes amplos, aprecia o contraste do azul do céu com o verde das matas, se maravilha com um pôr do sol. Não se conhece sociedade que não ache as flores bonitas. A biofilia faz parte do nosso passado e está codificada de alguma forma em nosso genoma.

Um exemplo da biofilia que existe em nós é o local onde preferimos viver. Nossos ancestrais habitavam cavernas em encostas de montanhas com a retaguarda protegida por um barranco e de onde pudessem dominar do alto um vale com um lago ou rio. E no vale gostavam de ver árvores frutíferas e animais. Essa é a paisagem que podemos observar das cavernas onde são encontrados os ossos de nossos ancestrais.

Portanto, não é surpresa que hoje, quem tem meios financeiros para construir sua casa de campo, busque essas mesmas paisagens. Os outros brigam por uma vista para um parque ou um pedaço de horizonte nas cidades. E quando nada disso é possível se satisfazem com a árvore na calçada ou um vaso na janela. Essas preferências, tão humanas, nos parecem óbvias, mas não são as preferências de um tatu, que se delicia nos túneis escuros onde viveram por milhões de anos.

A biofilia, com nossa migração para cidades, sofreu uma violenta opressão. Ela foi proibida e reprimida. O resultado é que hoje poucos percebem o quanto realmente somos biófilos. Esse desprezo pelos outros seres vivos é que permite a destruição dos ecossistemas e o pouco caso que temos com a extinção da biodiversidade. E é essa substituição da biofilia por valores como progresso e riqueza a qualquer custo que está pondo a sobrevivência da humanidade em risco.

Publicidade

Foi pensando nisso que, ao longo de quilômetros, imaginei que a restauração da biofilia é uma das poucas chances que temos de reverter nossa separação da natureza e a consequente degradação consentida do meio ambiente.

Se todos os seres humanos pudessem caminhar diariamente por uma hora no mundo natural, como faziam nossos ancestrais, é possível que a biofilia ressurja e melhore o mundo. Reservas e parques são os instrumentos que temos para reviver a biofilia. Que todos nós possamos ter como dever caminhar em meio ao nosso ambiente ancestral. A volta da biofilia talvez salve a humanidade.

Mais informações: E. O. Wilson, Biophilia. Harvard University Press, 2009

Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.