PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES

Opinião|Como o genoma de uma árvore pode revolucionar a indústria do papel?

Um grupo de cientistas conseguiu usar técnicas de edição genética para alterar o genoma de uma espécie de árvore usada na produção de papel. Entenda quais as consequências

PUBLICIDADE

Foto do author Fernando Reinach
Atualização:

Uma das qualidades apreciadas nas madeiras é sua durabilidade. Um tronco caído na floresta pode durar décadas até que os poucos fungos e insetos capazes de degradá-lo deem cabo dele. Madeiras de lei são usadas para construir barcos e casas e resistem a todos os tipos de ataque. Na antiguidade, somente pedras e tijolos competiam com a madeira. Entre os materiais produzidos por seres vivos, somente os ossos competem em durabilidade.

PUBLICIDADE

A durabilidade da madeira deriva de sua estrutura molecular. Após a morte da árvore, o que sobra são as paredes das células produzidas quando a árvore estava viva e crescia. Essas paredes celulares são compostas por celulose e lignina, dois polímeros de estrutura química muito diferentes ligados entre si. É como se uma cola muito poderosa (a lignina) fosse usada para colar fios muito longos de celulose. O material resultante, chamado de lignocelulose, é o principal componente da madeira e é ele que garante a durabilidade.

Essa resistência permite que florestas existam em um ambiente inundado por seres vivos que se alimentam de plantas. Com uma sequoia iria sobreviver milhares de anos na presença de todo tipo de herbívoro? As árvores entregam as folhas e brotos para os predadores, mas conseguem manter os troncos e raízes praticamente intactos.

Para produzir celulose em grande escala é necessário plantar florestas ou explorar de maneira sustentável florestas nativas Foto: REUTERS/Michael Buholzer

Acontece que o ser humano descobriu que a celulose presente nos troncos tem uma outra utilidade, a fabricação de papel. Papel para escrever, para imprimir, para encaixotar, embrulhar, papel higiênico, fraldas e lenços de todos os tipos. E assim surgiu a indústria de papel e celulose. Para produzir celulose em grande escala é necessário plantar florestas ou explorar de maneira sustentável florestas nativas. Por aqui plantamos pinho e eucalipto. Após a árvore crescer ela é cortada e levada para as fábricas de celulose, onde a resistência da madeira, tão elogiada no parágrafo anterior, é o maior problema.

Para produzir papel é preciso romper as ligações entre a celulose e a lignina e em seguida separar e purificar a celulose que é moldada em folhas de papel. A lignina é descartada ou queimada. O objetivo dessas fábricas é desfazer um dos materiais mais resistentes produzidos por um ser vivo, um material selecionado por centenas de milhões de anos para resistir a ataques.

Publicidade

Não é sem razão que a produção de celulose envolve processos químicos violentos, como o cozimento de fragmentos de madeira com hidróxido de sódio. Esse processo industrial consome muita energia e produz resíduos cujo tratamento e descarte, apesar de hoje serem bem conduzidos, são complexos e caros.

Se o sonho de um fabricante de barcos é uma madeira indestrutível, contendo muita lignina entrelaçada à celulose, o sonho das indústrias de papel e celulose é uma madeira macia, com pouca lignina, proveniente de uma árvores muito produtiva. Infelizmente esta árvore não existe na natureza. Se ela tivesse surgido ao longo da evolução, teria sido devorada rapidamente pelos herbívoros.

A grande novidade é que agora, usando todo o conhecimento acumulado sobre a maneira como a lignina é produzida e acumulada nas árvores, um grupo de cientistas conseguiu usar técnicas de edição genética para alterar o genoma de uma espécie de árvore (Populus trichocarpa) usada na produção de papel. E conseguiu reduzir drasticamente a quantidade de lignina presente na madeira.

Hoje sabemos que existem 11 famílias de genes e 24 intermediários envolvidos na produção de lignina. No passado, modificações que envolviam somente um ou dois desses componentes foram incapazes de alterar significativamente a quantidade de lignina nas árvores.

Agora, os cientistas analisaram as 69.123 possibilidades de modificações genéticas nas quais 6 a 11 genes poderiam ser alterados simultaneamente. Essas modificações só se tornaram possíveis com o advento de uma nova tecnologia de edição gênica. Eles selecionaram sete estratégias que pareciam mais promissoras e essas alterações genéticas foram executadas. Esse experimento resultou em 11 linhagens de árvores que foram crescidas por 6 meses e tiveram seus troncos analisados.

Publicidade

As árvores antes de serem modificadas possuem 20,9% de lignina e 3 vezes mais celulose que lignina. Após as alterações a quantidade de lignina caiu pela metade (49,1%) e a razão entre celulose e lignina aumentou 228%. A razão entre os tipos de lignina quase dobrou, a elasticidade da árvore não se alterou e a densidade da madeira caiu 15%. Pelo menos do ponto de vista da composição da madeira o sonho dos produtores de celulose parece ter se realizado.

PUBLICIDADE

Mas o mais importante é que duas das linhagens não tiveram seu crescimento ou volume de madeira alterado. No passado, árvores com menos lignina sempre apresentaram deficiências de crescimento. Esses resultados ainda precisam ser confirmados em plantações maiores, pois as árvores analisadas só tinham 6 meses e por volta de 2 metros de altura. Usando dados de uma fábrica, os autores também calcularam as diminuições de custo na produção de celulose e o aumento do retorno sobre o capital investido das fábricas que existem hoje. Mas é claro que tudo vai depender dessas variedades passarem nos testes de campo e isso ainda vai levar alguns anos.

Mais informações: Multiplex CRISPR editing of wood for sustainable fiber production. Science https://www.science.org/doi/10.1126/science.add4514 2023

Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.