Não é fácil ter errado no passado. Principalmente quando você tem leitores atentos. Foi meu caso essa semana quando retomei a discussão sobre o erro científico que levou à adoção da hidroxicloroquina. Muitos me cobraram: e a tal imunidade de rebanho, e os 8 milhões de mortos, não quer comentar sobre as besteiras que você escreveu?
Tudo começou com um artigo ultra pessimista que publiquei no dia 9 de maio de 2020, aproximadamente três meses depois do aparecimento do primeiro caso no Brasil. Naquele dia, o Brasil já tinha 155.939 casos confirmados pelo governo e 10.627 mortes (uma letalidade implícita de ~14%).
O artigo se chamava “Imunidade de rebanho por incompetência”. Nele, comento que o número de casos estava aumentando 1,6 vez a cada duas semanas e, portanto, 50% da população brasileira seria infectada até o final de agosto de 2020. E que, mantida a taxa de mortalidade, teríamos 8 milhões de mortos. E mais, com 50% da população infectada em agosto, os efeitos da imunidade de rebanho entrariam em ação e a pandemia arrefeceria (lembre que nessa época ninguém acreditava que uma vacina apareceria a tempo).
A estimativa de 8 milhões de mortes estava errada, não porque o número de mortes fosse menor, mas porque o número de infectados era muito maior que os divulgados pelo governo. Semanas depois, medindo diretamente o número de pessoas já infectadas (determinado pela porcentagem de pessoas já com anticorpos), descobrimos que em São Paulo, o número de infectados era de 6 a 8 vezes maior que o número divulgado pelo governo.
E, portanto, o número de mortos esperados seria muito menor. O que estava acontecendo era que o governo só testava os casos graves. Com os dados do número real de casos, a estimativa de mortes passou a ser de 800 mil, um número que se revelou próximo ao número real de mortes no Brasil (~700 mil).
O erro foi aceitar como certo um dado que não havia sido medido diretamente, especialmente numa época em que os testes eram escassos e a reação governamental, claramente insuficiente. Erro meu. Mas pelo menos passamos a medir o número correto. Claro que 8 milhões de mortes assustaram, mas era a conta possível na época.
Já a imunidade de rebanho é uma história mais interessante. A imunidade de rebanho é um fenômeno bem conhecido: à medida que uma porcentagem crescente de um grupo de pessoas é infectada por um vírus, e desenvolve resistência, o número de possíveis candidatos à infecção cai. Até um ponto que o vírus deixa de conseguir se reproduzir.
Isso acontece quando as pessoas são infectadas ou vacinadas. Mas, para a imunidade de rebanho ocorrer, existem três condições: a infecção (ou vacinação) deve provocar uma reação imunológica que impeça novas infeções; essa imunidade deve durar muito tempo; e, mais importante, o vírus não pode se modificar ao longo do tempo escapando do sistema imune.
Essas condições existem para o sarampo e não existem para o vírus da gripe. É por isso que, quando todos pegamos sarampo ou somos imunizados uma vez na vida, a doença praticamente desaparece. Já no caso da gripe, o vírus muda todo ano e precisamos repetir a vacinação.
No início da pandemia da covid-19, não tinham sido detectadas novas variantes do SARS-Cov-2 e se acreditava que ele era um vírus estável. Além disso, foi demonstrado que os anticorpos conferiam proteção. Foi com base nessas premissas que muitos cientistas passaram a acreditar que a pandemia se resolveria pela imunidade de rebanho.
E daí a importância de medir a fração da população já infectada. Mas as premissas estavam erradas, logo foram descobertas novas variantes do vírus capazes de escapar do sistema imune, e apareceu uma população crescente de pessoas infectadas pela segunda ou terceira vez.
Pronto, a imunidade de rebanho clássica não ocorreria. E, de fato, não ocorreu. Nesse caso, novamente o erro foi acreditar em premissas que não tinham sido comprovadas. O uso de premissas errôneas e sua subsequente correção são um dos mecanismos do progresso da ciência.
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Mas o interessante é que apesar do vírus apresentar novas cepas, e os anticorpos já gerados não protegerem contra novas infecções, o que foi descoberto é que a primeira infecção e as primeiras doses da vacina conferem proteção, não contra uma nova infecção, mas contra casos graves e mortes.
Assim, hoje, com toda a população já infectada ou vacinada, ainda existem muitos novos casos de covid, mas muito poucos deles se agravam ou levam à morte. Podemos, simplificando, dizer que a infecção ou a vacina, nos protegem de casos graves e de mortes. De certo modo nós atingimos uma imunidade de rebanho que evita casos graves e mortes. Mas isso não justifica o pouco caso do governo com o programa de vacinação.
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