Ainda não é possível conversar com os mortos, mas um experimento muito interessante demonstrou que é possível dialogar de forma simples com pessoas que estão dormindo.
Quando caímos no sono perdemos a consciência e o cérebro se desconecta do mundo exterior. Ao acordarmos, a consciência volta e nos conectamos novamente com o mundo através dos sentidos.
Geralmente nos deitamos, nossos olhos se fecham, e nossos movimentos são poucos e distantes um do outro. Hoje, sabemos que passamos por diferentes estágios enquanto dormimos. De maneira simplificada, existe o sono profundo onde estamos totalmente relaxados e sonhamos pouco, e existe um sono mais leve quando sonhamos e nossos olhos se movimentam rapidamente por detrás das pálpebras. Durante uma noite de sono, passamos diversas vezes por esses estágios.
Usando um equipamento de eletroencefalografia, podemos observar mudanças no comportamento das ondas cerebrais quando a pessoa cai no sono e quando ela desperta. Também é possível identificar o tipo de sono em que a pessoa está a cada momento.
As ondas cerebrais são diferentes quando estamos acordados ou dormindo e nos diferentes estágios do sono. Pessoas que têm problemas para dormir são geralmente conectadas a um desses equipamentos em uma clínica e monitoradas durante uma ou mais noites, o que permite aos médicos diagnosticar possíveis distúrbios relacionados ao sono, como, por exemplo, a apneia.
Nos últimos anos, foi demonstrado que, quando dormimos, nossos sentidos não estão totalmente desligados, pois é possível estimular a pessoa e passar a ela informações. Essas informações recebidas durante o sono muitas vezes são lembradas pela pessoa ao acordar. Geralmente, a lembrança ocorre como parte de um sonho. Por exemplo: falamos para a pessoa que existe uma bola vermelha na sala e, quando ela acorda, às vezes relata que no sonho apareceu uma bola vermelha.
Esses experimentos demonstram que existe um canal de uma via aberto durante o sono: informações vindas do mundo exterior são captadas durante o sono. O que os cientistas tentaram fazer foi estabelecer uma conversa (um canal de duas vias) com pessoas que estavam dormindo. Para tanto, é necessário demonstrar que a pessoa recebe e responde a um estímulo enquanto está dormindo sem que acorde.
Foram estudados 49 voluntários, sendo 22 pessoas saudáveis e 27 pessoas com narcolepsia (pessoas que caem no sono diversas vezes durante o dia). Elas aceitaram passar a noite numa clínica, onde colocaram seus pijamas e deitaram-se numa cama confortável em um quarto escuro protegido dos sons externos. Um local ideal para dormir.
Os eletrodos do equipamento de eletroencefalograma foram ligados à cabeça e mais dois eletrodos foram colocados na face. Um deles monitorava os movimentos da boca, detectando as contrações musculares típicas de um sorriso e o outro o movimento que fazemos quando enrugamos a testa. Feito isso, os cientistas explicaram para as pessoas como seria o experimento. Quando elas caíssem no sono um alto-falante iria falar palavras. Uma de cada vez. Algumas das palavras seriam palavras bem conhecidas em francês (os experimentos foram feitos na França) e outras seriam palavras inventadas que não possuem sentido. Os cientistas pediram aos voluntários que caso ouvissem uma palavra que fizesse sentido deveriam mover a boca ou a testa (esses movimentos foram escolhidos pois durante o sono não temos controle voluntário sobre os outros movimentos). Após a explicação as pessoas se deitaram e foram dormir.
Assim que o eletroencefalograma indicou que a pessoa estava dormindo, o alto-falante começou a falar essas palavras, tanto as que fazem sentido quanto as inventadas. As palavras eram apresentadas a cada dez segundos em um volume suficientemente baixo para que a pessoa não acordasse. Os experimentos duravam 20 minutos e eram repetidos diversas vezes durante a noite.
Nesse período, o voluntário passava pelas diferentes fases do sono. Um computador escolhia ao acaso a palavra e registrava simultaneamente as ondas cerebrais da pessoa e as contrações dos músculos faciais. No fim do experimento, ao acordar, a pessoa relatava o que tinha vivido durante o sono.
O que os cientistas descobriram é que todos os voluntários, em qualquer fase do sono, responderam com movimentos de boca ou da testa quando estimulados por palavras verdadeiras e não responderam com esses movimentos quando estimulados com palavras falsas. Além disso, como estavam sendo monitorados pelo eletroencefalograma, foi possível determinar que essas pessoas não haviam acordado momentaneamente durante o estímulo e a resposta. E, finalmente, na maioria dos casos, ao acordar, os voluntários não se lembravam de terem respondido corretamente ao estímulo. Quando se lembravam, o estímulo aparecia na memória misturado a sonhos.
Ao submeter pessoas a palavras verdadeiras e falsas, e observar resposta somente quando estimulado por palavras verdadeiras, o experimento demonstra que funções cognitivas sofisticadas estão envolvidas na resposta. Isso porque as funções mentais usadas para separar sons de palavras estavam funcionando. Ou seja, o resultado demonstra que a capacidade de discriminar sons de palavras está atuando enquanto as pessoas dormem e que a mente, enquanto dorme, é capaz de discriminar o tipo de estímulo e responder da forma combinada. Em suma, é possível travar um diálogo simples com pessoas que estão dormindo.
Esse resultado demonstra que o sono é um estado mental mais complexo do que imaginávamos, e a diferença entre estar dormindo e estar acordado não é simplesmente um ligar e desligar da consciência. Outro aspecto importante é que ele demonstra que podemos “conversar” enquanto estamos dormindo e isso abre a possibilidade de investigarmos diretamente o que se passa na mente das pessoas enquanto dormem. Isso vai permitir entender melhor o que é exatamente dormir.
Mais informações: Behavioral and brain responses to verbal stimuli reveal transient periods of cognitive integration of the external world during sleep Nat Neurosci
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