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Opinião | Estudo desvenda mistério na comunicação entre pássaros e humanos

Nova pesquisa revela que ave guia-do-mel é capaz de aprender a ‘língua’ usada por diferentes populações do continente africano

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Foto do author Fernando Reinach

Na Tanzânia, uma pessoa da cultura Hadza entra na floresta. Ela emite um som que aprendeu com os pais. Logo um pássaro chamado guia-do-mel (Indicator indicator) emite seu piado típico e pousa em uma árvore próxima. A pessoa responde com o mesmo som específico. O pássaro responde e muda de árvore.

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A pessoa responde e se dirige até a nova árvore. E esse ritual se repete dezenas de vezes, com o pássaro guiando a pessoa para o interior da floresta, até que o pássaro pousa a poucos metros de uma colmeia de abelhas (Apis mellifera).

Usando fumaça, a pessoa espanta as abelhas, abre a colmeia e recolhe o mel. Assim que o mel é coletado, o pássaro desce e come a cera (esse é um dos poucos pássaros capazes de digerir cera). Trocando assobios, pássaro e humano prosseguem na busca, o pássaro indicando o caminho para a próxima colmeia.

A colaboração entre duas espécies na busca de alimentos é chamada de comensalismo, e esse é um dos poucos exemplos envolvendo humanos. O pássaro sabe onde estão as colmeias, mas tem dificuldade em espantar as abelhas, o homem não sabe onde estão as colmeias, mas sabe espantar as abelhas. Juntos eles têm mais sucesso. O pássaro vende seu conhecimento por um pouco de fumaça e ambos se alimentam.

Caçador Yao segura um guia-do-mel em Moçambique; estudo revela curiosidades sobre a relação entre humanos e essa espécie de pássaro Foto: Claire Spottiswoode/University of Cambridge/AFP

Estudos mostram que um coletor experiente consegue coletar seis vezes mais mel quando colabora com o pássaro. E o pássaro aumenta três vezes seu sucesso.

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Isso foi descoberto monitorando o sucesso dos pássaros e humanos pedindo ao coletor que não se comunicasse com o pássaro. Nessa situação, o coletor tem dificuldade em localizar a colmeia e o pássaro só consegue se alimentar nas horas mais frias do dia, quando as abelhas ficam dóceis e não atacam o pássaro quando ele bica a colmeia. Essa colaboração pode ser iniciada pelo coletor, emitindo o som ao entrar na floresta, ou pelo pássaro que emite seu piado sempre que observa uma pessoa entrando na floresta.

Essa forma sofisticada de comensalismo está presente em diversas regiões da África e foi descrita faz décadas. A novidade é que agora os cientistas compararam seu uso pelos Hadza no norte da Tanzânia com a praticada pelos Yao, uma população que mora no norte de Moçambique.

Nos dois países, as populações interagem com o mesmo pássaro. O guia-do-mel é um desses pássaros que não aprende novos cantos quando jovem e todos os membros da espécie, em toda a África, produzem o mesmo canto e as duas populações humanas reconhecem o pássaro pelo mesmo canto.

Mas, o que os cientistas observaram é que o som utilizado pelos Hadza e pelos Yao para chamar o pássaro é completamente diferente. Os Yao usam um trinado enquanto os Hadza usam uma melodia curta, assobiada. Em ambas as culturas as crianças aprendem com seus pais, desde pequenas, a usar o sinal. Apesar dos sinais emitidos em ambos os locais serem diferentes, a colaboração entre os pássaros e os humanos funciona de maneira idêntica.

Essa descoberta significa que, ou os pássaros das duas regiões identificam os humanos usando qualquer um dos dois sinais, ou que os pássaros de uma região aprenderam a reconhecer os humanos identificando sinais distintos.

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Para distinguir entre essas possibilidades, os cientistas gravaram o som usado pelos Hadza e pelos Yao e deram um pequeno alto-falante para os Yao que reproduzia o som produzido pelos Hadza. E vice-versa.

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Assim os Hadza foram para sua floresta e tentaram se comunicar com os pássaros locais usando o som dos Yao. E os Yao foram para a sua floresta tentar coletar mel usando o som dos Hadza. O resultado desse experimento é o seguinte: no território dos Hadza, os pássaros só colaboravam se os humanos usassem o som tradicional dos Hadza e não pareciam compreender o som usado pelos Yao. E o inverso ocorre no território dos Yao, onde os pássaros ignoram os chamados usados pelos Hadza.

Esse experimento demonstra que, apesar de os pássaros usarem o mesmo som nos dois territórios, eles, ao longo do tempo, aprenderam a colaborar com diferentes populações humanas usando suas respectivas “linguagens”. Em outras palavras, essa espécie de pássaros fala somente uma “língua” tanto na Tanzânia ou em Moçambique, mas são capazes de aprender a “língua” usada pelas diferentes populações humanas e estabelecer a mesma relação de comensalismo.

Hoje no Ocidente nos orgulhamos de tecnologias como drones, capazes de localizar colmeias, mas estas tecnologias estão longe de alcançar a eficiência e a beleza de nossa antiga parceria com os guia-de-mel.

Mais informações: Culturally determined interspecies communication between humans and honeyguides. Science 2023

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Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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