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Opinião | Existe bicho de 3 pernas? Cientistas dizem que sim

Modelo básico dos vertebrados surgiu em um ancestral que viveu há 518 milhões de anos e está aqui até hoje

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Foto do author Fernando Reinach
Atualização:

Entre os vertebrados existe uma enorme diversidade de formas, mas nunca um que se locomovesse com um número ímpar de pernas. Agora um grupo de cientistas anunciou ter encontrado um exemplo. Fui atrás da novidade porque o bicho é conhecido de todos os brasileiros. Concluí que ao anunciar a descoberta forçaram a barra. Veja se você concorda.

O projeto básico de um vertebrado é simples. Consiste numa cabeça localizada em uma das pontas de uma longa coluna vertebral. Em dois pontos, ao longo da coluna, estão localizadas duas estruturas ósseas chamadas de cinturas. Uma é chamada de cintura escapular e a outra de pélvica. A parte da coluna que vem depois da cintura pélvica é o rabo.

Periquito comendo sementes no Vale do Ribeira, no interior de SP; cientistas mediram de onde vem a energia do animal subindo numa árvore Foto: EPITÁCIO PESSOA/ESTADÃO

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Em cada cintura estão ancorados ossos longos que os vertebrados usam para se locomover, são as pernas. Toda a diversidade dos vertebrados deriva desse modelo básico. Um exemplo é o jacaré. Da cabeça parte a coluna vertebral que termina na ponta do rabo. No primeiro terço encontramos a cintura escapular de onde saem as pernas anteriores. Mais atrás encontramos a cintura pélvica, de onde emergem as patas posteriores. Depois vem o rabo.

Se você remover o rabo de um jacaré e mantiver as cinturas e as quatro pernas obterá o esquema básico de um sapo. Se você remover as duas cinturas e as pernas do jacaré terá uma cobra. Se você remover somente a cintura pélvica e transformar as patas anteriores em nadadeiras terá um peixe ou uma baleia. Agora, se você transformar as patas anteriores em asas terá um pássaro, com duas pernas e duas asas. Se você colocar o bicho na vertical, se equilibrando nas patas posteriores, e usando as anteriores para agarrar as coisas, terá um ser humano.

O interessante é que, em todos os vertebrados, partes desse plano básico podem ser perdidas (como perdemos o rabo) ou modificadas (como as asas e nadadeiras), mas nunca surgiu um vertebrado com algo novo, como mais de dois membros em uma cintura. O modelo básico dos vertebrados foi mantido por milhões de anos. Surgiu em um ancestral que viveu há 518 milhões de anos e está aqui até hoje.

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Se você pensar em carros, vale o mesmo princípio. A ideia de um chassi suportando um motor e dois eixos com rodas, coberto por uma carroceria, tem sobrevivido desde que surgiu, há aproximadamente 100 anos. Duvido que dure 500 milhões de anos.

Mas, vamos ao vertebrado de três pernas. Segundo esses cientistas, é nosso querido periquito. E a terceira perna seria o bico. Quem não viu um periquito usando o bico para se locomover, pendurado em um galho pelo bico? Mas, pensei, se vale o bico como perna, também vale o rabo do macaco, já que eles usam o rabo para se pendurar quando pulam de galho em galho. E se vale o rabo, então vale a tromba, pois já vi elefantes usarem a tromba para subir em banquinhos no circo. E as cobras que rastejam com a barriga? E os cangurus que usam o rabão para auxiliar no pulo? Agora tudo pode ser chamado de perna?

O problema está na nomenclatura que define o que conta como perna. Para os cientistas, bípede inclui tudo que usa duas “coisas” para se locomover. E quadrúpede usa quatro. Nós somos bípedes, pois usamos duas pernas, mas se usássemos duas pernas e uma mão seríamos trípodes (H.G. Wells descreve seres trípodes no livro A guerra dos Mundos, mas eles, vindos de Marte, não eram vertebrados).

E a dificuldade para os cientistas é demonstrar que essas “coisas” que usamos para andar realmente dão o apoio, o impulso e fornecem a energia para a locomoção, pois seria isso que define algo como perna. E esse era o objetivo do trabalho: demonstrar que, no caso dos periquitos, o bico e a cabeça são um instrumento de locomoção, dando apoio, impulso e fornecendo a energia. Já vou avisando que o rabo dos macacos não se enquadra pois não fornece energia, só sustentação. No caso do canguru, tudo bem, provavelmente o rabo fornece sustentação e energia, mas isso ainda precisa ser demonstrado.

Para medir a sustentação e a energia advinda do bico e do pescoço do periquito, os cientistas construíram uma superfície plana com arames em forma de quadrados ligados a sensores de força (esses sensores são parecidos com os existentes nas balanças de banheiro que detectam a força gerada por nosso corpo na plataforma). E aí colocaram os periquitos para andar nessa superfície. E, claro, quando ela estava horizontal, os simpáticos andavam rebolando sem usar o bico, só as pernas.

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Aos poucos, os cientistas foram inclinando a plataforma e, a partir de 40 graus, o periquito começa a usar o bico se agarrando no arame. Com os sensores de força, em cada inclinação, os cientistas conseguiram determinar quanto do apoio e da energia para o movimento vinha do bico e da cabeça. Com base nessas medidas foi possível demonstrar que, quando sobe em uma superfície quase vertical, praticamente a metade da energia usada para elevar o corpo provém dos músculos do pescoço e é transmitida à superfície pelo bico. A outra metade vem das duas pernas.

Tudo bem, eles demonstraram que o periquito usa a energia dos músculos do pescoço para subir nas árvores, mas é razoável afirmar que por esse motivo os periquitos são vertebrados tripédicos? Ou seriam eles vertebrados bípedes que usam o bico para ajudar na sua locomoção?

Acabei de ler o trabalho, aliás muito bem executado, e fiquei pensando nesses cientistas que dedicaram anos de sua vida para medir de onde vem a energia de um periquito subindo numa árvore. Agora, em 2024, o mesmo grupo publicou outro trabalho sobre como os periquitos sobem em fios pendurados na horizontal ou vertical (spoiler: os bicos estão envolvidos). A curiosidade realmente move a humanidade.

Mais informações: Overcoming a ‘forbidden phenotype’: the parrot’s head supports, propels and powers tripedal locomotion. Proc. Roy. Soc. B. 2022

Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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