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Opinião|O que um mapa de 9 mil anos revela sobre problemas da humanidade hoje?

Já naquela época homens tiveram de procurar soluções para sobreviver depois de terem exterminado parte da biodiversidade

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Foto do author Fernando Reinach
Atualização:

Em 1920 um avião que sobrevoava a Jordânia e o norte da Arábia Saudita observou um enorme desenho no formato de pipa no solo do deserto. Hoje, com o auxílio de satélites, mais de 6.255 estruturas desse tipo foram localizadas na região. Do alto elas parecem desenhos, mas observadas do solo são longuíssimos muros de pedra, de até 5 quilômetros de extensão, que formam os dois lados do rabo da pipa, e desembocam em um espaço circular ou poligonal, do tamanho de muitos quarteirões, também formado por muros de pedra, que correspondem ao corpo da pipa. Ao longo do muro que forma o corpo da pipa existem grandes poços circulares cujas paredes também são feitas de pedra.

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Hoje sabemos que essas estruturas foram construídas por nossos ancestrais no neolítico, por volta de 7 a 15 mil anos atrás, e eram usadas na caça de grandes animais. Os animais eram tocados para dentro do funil formado pelas duas paredes de pedra da cauda da pipa até chegarem no círculo que forma o corpo da pipa. Ao tentarem escapar, alguns caiam nos fossos localizados no perímetro do corpo da pipa, onde eram presa fácil para os humanos da época. Estas enormes estruturas de pedras empilhadas e fossos eram armadilhas construídas por caçadores. A presença de ossos nos fossos confirma o uso que nossos ancestrais davam para as construções.

A razão para essas estruturas só terem sido identificadas em 1920 é que do solo observamos os muros e os fossos, mas é quase impossível ter uma visão geral do conjunto e, por isso, sem a imagem aérea, era difícil imaginar o todo e deduzir sua função. Não sabemos como os homens da época conseguiam planejar e executar os quilômetros de muros que compõem cada uma dessas construções que se espalham por dezenas de quilômetros. Do alto é possível ver que a topografia do terreno foi incorporada na construção e, muitas vezes, vales foram usados como condutores para a entrada do funil. Os arqueólogos também estimam que a caça usando essas armadilhas envolvia dezenas de pessoas, uma parte tocando os animais, outra matando os capturados nos fossos. Essas obras impressionam pelo tamanho e mostram quão sofisticadas eram essas populações do neolítico.

Foto aérea de uma pipa do deserto na Jordânia Foto: Global Kites Project/PLoS ONE

A novidade é que agora foram descobertas, na proximidade de duas dessas pipas, grandes blocos de pedra com vários metros de comprimento, onde, na superfície plana do bloco, estão esculpidos mapas de pipas. Quem esculpiu esses mapas teve o cuidado de representar os muros como sulcos cavados na pedra e os fossos como buracos. O formato do desenho corresponde exatamente a uma dessas pipas, como se fosse um mapa ou um desenho arquitetônico. Usando métodos de datação foi possível determinar que esses mapas foram esculpidos por volta de 9 mil anos atrás, mais ou menos no mesmo período em que as armadilhas (pipas) foram construídas.

O mais interessante é que os cientistas, usando fotos de satélite das pipas próximas ao local, conseguiram identificar a pipa exata que está representada no desenho esculpido na pedra. E mais, comparando o desenho de alguns metros de tamanho, com a pipa real, os cientistas puderam demonstrar que o desenho não somente é fiel ao representar o formato das diversas partes dos muros e fossos, mas respeita perfeitamente as proporções da construção. Ou seja, é como se fosse uma planta arquitetônica moderna ou um mapa com uma escala definida (um centímetro no mapa corresponde a um número fixo de metros na estrutura verdadeira). Essa descoberta demonstra que quem fez o mapa tinha uma visão geral de toda a pipa, como a que temos hoje quando a observamos usando satélites. É claro que essas pessoas tinham essa visão sem nunca terem sobrevoado a região. A tecnologia usada para fazer as medições tanto no mapa quanto na própria pipa ainda são desconhecidas.

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Armadilhas de pipas após escavação na Jordânia; nossos ancestrais eram capazes de desenhar mapas e organizar a atividade coletiva da caça Foto: Global Kites Project/PLoS ONE

Mas qual a utilidade desses mapas ou plantas arquitetônicas? Será que eram projetos usados para construir pipas, com hoje usamos projetos para construir casas? Ou seriam mapas desenhados na pedra após a pipa ter sido erguida? É impossível saber, mas os cientistas acreditam que o mais provável é que eram mapas construídos a posteriori. Eles suspeitam que esses mapas eram usados para organizar a caçada. É possível imaginar um grupo de dezenas de pessoas em volta do mapa decidindo quem ficaria em cada fosso esperando os animais chegarem, quem tocaria os animais e assim por diante. Como as pipas são muito grandes, a distância entre os caçadores torna impossível a comunicação durante a caçada (não existiam celulares ou rádios 9 mil anos atrás) e assim uma caça que duraria dias ou semanas provavelmente era organizada com antecedência em volta desses mapas esculpidos.

Essa descoberta demonstra quão sofisticados eram nossos ancestrais, não somente sendo capazes de desenhar mapas, mas capazes de construir essas armadilhas e organizar a atividade coletiva da caça. A capacidade de caça era tão grande que muitas espécies foram extintas na região enquanto outras se tornaram difíceis de capturar. Hoje já não existem mais animais de grande porte na região, como não existem na Europa.

Foi exatamente nessa região, onde existem essas 6.255 armadilhas, que surgiu a agricultura, muito provavelmente como uma solução para alimentar a população quando a caça se tornou escassa. Já naquela época os homens tiveram que procurar outras soluções para sobreviver depois de terem exterminado parte da biodiversidade. O problema que eles viveram faz 9 mil anos nos acompanha até hoje.

Mais informações: The oldest plans to scale of humanmade mega-structures. PLoS ONE

Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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