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Opinião|Os trouxas de Cerqueira César: construtoras vendem sonho do paraíso perto da Paulista. Mas e depois?

Um dos poucos bairros de São Paulo em que é possível se sentir em Roma ou Paris ganha ares de Morumbi. Boom de novos prédios residenciais acaba com o que a região tem de melhor

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Foto do author Fernando Reinach
Atualização:

Cerqueira César é um retângulo de terra limitado pela Avenida Paulista, pela Peixoto Gomide, Avenida Rebouças e pela Estados Unidos. Seria quase um quadrado se o Hospital das Clínicas não tivesse sido incluído. O bairro surgiu em 1890, quando a cidade subiu pelas encostas do espigão da Paulista e transbordou ribanceira abaixo em direção ao Rio Pinheiros. Foi então que José Oswald de Andrade, pai do escritor Oswald de Andrade, resolveu lotear suas três chácaras, a Água Branca, a dos Pinheiros e do Rio Verde.

O loteamento se chamava Villa América. Contrastando com as mansões da Avenida Paulista e de Higienópolis, os lotes eram pequenos e a encosta foi ocupada por sobrados, muitos geminados. Por ali não moravam os barões do café. Os habitantes eram remediados e viviam “do outro lado da montanha”, de onde sequer era possível observar a “cidade”. O bairro se tornou independente, com seu comércio local, bares e restaurantes, sapateiros, costureiras, padarias e outros pequenos comércios.

Região de Cerqueira César tem uma das melhores localizações da cidade de São Paulo Foto: Felipe Rau/Estadão

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Logo, a cidade invadiu a região hoje chamada Jardim América, loteada e ocupada pelos casarões da Avenida Brasil e adjacências. Cerqueira César se tornou um bairro mais simples e agradável, cercado de mansões tanto na Paulista quanto na Avenida Brasil.

O bairro fazia a ponte entre os novos desenvolvimentos arborizados feitos pela Cia City, a partir de 1911, e o centro. Com o passar dos anos, por não ter regras tão rígidas quanto as dos bairros da City, muitos conjuntos de casas foram demolidos e substituídos por edifícios residenciais com apartamentos de diversas metragens.

Essa história transformou Cerqueira César em um bairro de uso misto extremamente bem localizado. O mais importante é que na segunda metade do século 20, Cerqueira César se tornou um dos locais preferidos dos paulistanos que queriam viver na metrópole com o conforto de ter tudo que necessitavam a poucas quadras de distância.

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O Cerqueira César de hoje é um bairro delicioso, misturado e democrático. Você pode comprar uma bolsa de milhares de reais na Oscar Freire, ou um sapato barato nas casas Tody, na Rua Augusta, ou mesmo levar um sapato velho para trocar a sola em uma das muitas sapatarias. E, claro, pode comprar usados nos brechós.

Pode comer nos melhores e mais caros restaurantes de São Paulo, como o Don ou o Gero e deixar uma fortuna, comer uma pizza mais barata no Carlos, beber com os amigos no Bar Balcão, ou fazer um almoço de família devorando toneladas de uma massa barata e deliciosa nas trattorias.

E, se achar tudo isso caro, pode comer um prato feito no Ministrão ou nos restaurantes por quilo. E tudo pode ser feito a pé, de dia ou de noite. Os melhores pães, padarias, sorveterias, cafés e vendinhas de São Paulo hoje ocupam as antigas casinhas geminadas. O mesmo ocorre com as livrarias e galerias de arte, e claro, o famoso Santa Luzia. Quem não foi não conhece São Paulo.

Para quem gosta da vida urbana da cidade grande, onde tudo é feito a pé e você conhece os comerciantes, os empalhadores de cadeira, os garçons e o senhor que fatia frios na Galeria dos Pães, Cerqueira César é o paraíso. É o local em São Paulo onde você pode se sentir em Roma, Paris ou Londres. Isso se deve ao uso misto do bairro, essa mistura de pequenas casas, vilas e apartamentos, onde o comércio que ocupa as antigas residências se mistura com habitações de todos os tamanhos e custos.

É natural que o bairro atraia cada vez mais moradores que desejam usufruir suas delícias. E isso não passou despercebido das construtoras. Protegidos pela nova lei de zoneamento, que incentivam o adensamento das regiões em volta dos metrôs e corredores de transporte, Cerqueira César, cercada e atravessada por esses corredores, sofre um boom de investimento em novos prédios residenciais.

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São dezenas em construção, outras dezenas sendo planejados ou aprovados, a grande maioria com apartamentos enormes, com amenidades necessárias para o habitante não precisar sair de casa.

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Cozinha gourmet para você não precisar comer nos ‘por quilo’ da região, garagens à vontade para não precisar andar a pé, academias para não frequentar as do bairro. E muitas cercas e guaritas para você ficar com medo de sair na rua. São cópias do que se constrói nos bairros isolados, como o Morumbi.

Tudo isso seria desculpável se não fosse o fato que cada um desses prédios vai ocupar a área de dezenas dos pequenos sobrados onde estão instalados todos os comércios e serviços que tornam Cerqueira César o paraíso civilizado no caos de São Paulo. Farmácias estão desaparecendo, junto com butiques, pequenos restaurantes, padarias, sapatarias.

Fica impossível levar um sapato para consertar, comprar um pendurador de toalha, tomar cerveja em um boteco. Restaurantes, sejam de luxo e por quilo, são colocados abaixo sem a menor cerimônia. Tudo que caracterizava Cerqueira César está vindo abaixo e, aos poucos, a área se transforma em um paliteiro de apartamentos, esse ambiente culturalmente medíocre que caracteriza locais como o Morumbi, onde, se você quer comprar um pão, tem de sair de carro, e onde não existem pedestres.

Passeando pelo bairro, vejo vendedores de apartamentos e suas maquetes relatando a potenciais compradores as delícias da vida em Cerqueira César. E os compradores, conversei com alguns, entre um almoço em um restaurante e compras em butiques, se deliciam com a ideia de vir morar por aqui.

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Se imaginam bebendo no Bar Balcão sem saber que o terreno foi vendido e o bar vai fechar. Passeiam pelo comércio sem saber que ele está desaparecendo. E, depois da visita pelo bairro, voltam e compram seus apartamentos ainda na planta, imaginando que vão desfrutar de Cerqueira César.

Os que as imobiliárias e seus vendedores não contam é que estão vendendo um bairro que não vai existir quando essas pessoas se mudarem para cá. Que para construir e vender esses sonhos, estão destruindo exatamente o sonho que vendem.

Essas pessoas, que esperam se mudar e viver no Cerqueira César de hoje, são o que costumo chamar dos trouxas de Cerqueira César. Quando se mudarem, o sonho que compraram já não vai existir. Mas ai já vai ser tarde, as construtoras já embolsaram os lucros e os trouxas vão engolir a seco sem entender direito o que aconteceu.


Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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