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Opinião | Pé, palmo, polegada: como surgiram as medidas baseadas no corpo humano? Entenda

Um levantamento de todos os registros do uso dessas medidas em 186 culturas diferentes mostra que um pouco mais de trinta maneiras de medir comprimentos estão espalhadas pelo mundo

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Foto do author Fernando Reinach

Eu sempre achei um atraso de vida as medidas de comprimento como o pé e a polegada usadas pelos ingleses e norte-americanos. Essas medidas baseadas em propriedades do corpo humano, me pareciam primitivas quando comparadas com as medidas ditas científicas, como o metro e o segundo. Mas agora mudei de ideia ao ler um artigo sobre suas origens e vantagens.

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O primeiro registro de uma medida de comprimento foi encontrada no Egito e data de 2.700 anos antes de Cristo. É uma referência ao Cubit, a distância entre o cotovelo e a ponta do dedo médio da mão estendida. Desde então o ser humano vem usando partes do corpo para medir distâncias.

Um levantamento de todos os registros do uso dessas medidas em 186 culturas diferentes mostra que um pouco mais de trinta maneiras de medir comprimentos estão espalhadas pelo mundo. O comprimento dos braços, um Fathom (da ponta de um dedo de um braço estendido à ponta do dedo do outro braço), é a mais comum, e está presente em 85 das 186 culturas. Ela é seguida pelo palmo, presente em 81 culturas. A menos comum é a grossura da perna, presente em somente três culturas.

Essas medidas são semelhantes entre pessoas, mas não são idênticas, e por isso foram padronizadas na Inglaterra. A polegada e o pé deixaram de ser o pé e o polegar de cada pessoa para se tornar um pé padrão, de tamanho fixo. E mais tarde, sob influência dos franceses, foram substituídas pelo metro, um padrão dito universal.

Mas o fato é que até hoje as medidas baseadas em partes do corpo continuam a ser usadas em todo o mundo. Se por um lado essa imprecisão dificulta o comércio (como saber se uma roupa de três palmos vai te servir?), por outro lado possuem muitas vantagens sobre o uso de uma medida universal.

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A principal vantagem é o uso dessas medidas na construção de objetos ergonômicos, que dependem do tamanho da pessoa que vai usar o objeto. Nos países nórdicos, os Karekia, descobriram que o esqui ideal para neve é aquele que tem o comprimento dos braços de quem vai usar (um fathom) mais seis palmos. O que faz sentido, pois o esqui ideal depende do tamanho da pessoa e o uso de medidas baseadas no corpo facilita a vida.

Os índios Yaki sabem que o arco ideal tem o tamanho da distância do quadril da pessoa até a ponta do dedo do braço estendido na horizontal e portanto é feito usando esse padrão para cada jovem caçador e refeito à medida que ele cresce.

Os índios Yaki sabem que o arco ideal tem o tamanho da distância do quadril da pessoa até a ponta do dedo do braço estendido na horizontal. Na imagem, uma apresentação na aldeia Kari-Oca ligada a outra etnia Foto: Wilton Junior/Estadão

Já os Inuits, do Ártico, descobriram que a canoa ideal, com maior facilidade de controle e velocidade deve ter um Fathom da ponta posterior até o local do assento (que deve medir o equivalente do sovaco o ao punho fechado) e ter na parte anterior um Fathom e meio de comprimento. Já a altura da canoa deve ter o tamanho do antebraço do usuário. Com essa receita eles conseguem construir canoas perfeitas para cada pessoa, respeitando as diferenças individuais.

Sem dúvida muito mais fácil que construir uma canoa personalizada usando o sistema métrico. Até o advento das fábricas, os artesãos faziam sapatos usando como medida o pé do cliente. Foi a produção industrial que criou os sapatos com medidas padrão. Mas ainda hoje os melhores alfaiates e artesãos usam as medidas dos clientes.

Outra vantagem das medidas baseadas no corpo humano é que as pessoas levam consigo, o tempo todo, seus instrumentos de medida, o que sem dúvida facilita a vida, apesar de sacrificar a precisão. Usar medidas baseadas no corpo e nas suas necessidades também permite criar formas de medir distâncias que fazem muito sentido.

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Algumas culturas do Oceano Pacífico, que se deslocam de uma ilha à outra remando suas canoas, medem a distância entre as ilhas usando a quantidade de água doce que precisam levar na travessia: a ilha A fica a três cocos cheios de água da ilha B. Faz sentido usar essa medida, ela reflete melhor que o quilômetro a dificuldade de chegar de A a B. Na volta, se você rema contra a corrente, a distância pode ser cinco cocos e não três. Sua chance de sucesso depende mais de quanta água doce você precisa e menos da distância em quilômetros.

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Todos esses exemplos, encontrados nesse estudo do uso de partes do corpo humano como padrão de medida, mostram que até o advento do comércio de mercadorias por longas distâncias e a produção em larga escala de bens, não fazia o menor sentido adotar padrões únicos e precisos. É por isso que no século 21 boa parte da humanidade ainda usa esses padrões.

Agora me sinto um sábio quando vou visitar um imóvel e meço o tamanho da sala usando passos de aproximadamente um metro ou alugo esquis com base na minha altura. E é bom lembrar que qualquer pessoa que compra um sapato jamais confia na numeração indicada na caixa, e insiste em experimentar o calçado. Afinal o pé que interessa dentro do sapato é o seu pé e não um pé padrão, definido por um número impresso na caixa que, para piorar nossa vida, é diferente em cada continente.

Mais informações: Body-based units of measure in cultural evolution. Science https://www.science.org/doi/10.1126/science.adf1936 2023

Fernando Reinach é biólogo.

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Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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