Nosso corpo pode ser comparado a um forte medieval. Estamos cercados por inimigos que tentam pular nossos muros. São vírus, bactérias e parasitas tentando burlar nossas defesas e se instalar no nosso interior causando doenças. Na lista de nossas defesas estão as barreiras físicas, como a pele, e o sistema imune, que treinamos incessantemente com vacinas. Rasgos e buracos em nossa pele podem ser costurados num hospital, tampados com esparadrapo, ou desinfetados com álcool. Batalhas entre nossas defesas e os invasores existem faz milhões de anos e convivemos em equilíbrio com os inimigos, ora ganhando ora perdendo. Se ainda existimos é porque perdemos batalhas mas nunca a guerra. Apesar de todas as defesas, vez por outra somos invadidos. A pandemia da covid-19 e as gripes anuais são exemplos de guerras perdidas.
Conhecer nossas armas e seu funcionamento é essencial para que a Medicina consiga nos ajudar. Ainda estamos longe de conhecer todas as armas que nossa espécie desenvolveu, ao longo de milênios de seleção natural, nos constantes embates com os inimigos. A novidade é que agora foi descoberta uma nova arma que dispomos em nosso corpo contra o vírus tipo A da gripe aviária. Não é uma arma criada pela medicina, mas uma que sempre existiu em nosso corpo sem que tivéssemos conhecimento. Além da descoberta dessa arma, foi descoberto o truque que esses vírus usaram nas poucas vezes que tiveram sucesso em romper esta defesa.
A arma é uma proteína chamada BTN3A3. Ela foi descoberta entre as centenas de proteínas que são produzidas quando células humanas são estimuladas por interferon. Essa proteína existe em todos os primatas mas não existe em outros mamíferos como vacas, porcos, cavalos e ratos. É por este motivo que esses animais são facilmente infectados pelos vírus da gripe aviária. Faz alguns anos que o espalhamento de um vírus de gripe aviária nos porcos da China obrigou o governo chinês a sacrificar a maior parte do rebanho. Mesmo com essa gripe se espalhando entre os porcos, pouquíssimas pessoas foram infectadas.
Para demonstrar o poder dessa proteína, seu gene foi colocado em camundongos e sua produção no pulmão desses animais torna os bichinhos resistentes ao vírus aviário tipo A. Os cientistas também investigaram como essa proteína consegue bloquear a atuação do vírus em seres humanos. Eles descobriram que a proteína BTN3A3 se liga à proteína que encobre o material genético do vírus (a nucleoproteína) logo que ele entra no núcleo das células humanas e impede a replicação do material genético.
Mas você deve se lembrar que ao longo da história surgiram mutantes do vírus da gripe aviária que conseguiram entrar em nosso forte e causaram grandes epidemias e muitas mortes entre nós. É o caso da pandemia de gripe espanhola (1918), depois tivemos surtos em 1957, 1968 e 2009 (a cepa H1N1). Para entender porque essas cepas conseguiram escapar da proteção conferida pela BTN3A3, os cientista sequenciaram a nucleoproteína do vírus que é atacada pela BTN3A3 e descobriram que em todos os casos o vírus aviário tinha sofrido uma mutação na nucleoproteína. E a mutação sempre ocorria na posição 52 ou 313. Ou seja, para escapar de nossas defesas o vírus aviário precisa ter na sua nucleoproteína mutações específicas nessas duas posições.
Essa descoberta é importante pois não somente mostra que essa nossa defesa pode ser quebrada (como já ocorreu) mas define o que é necessário para que ela seja quebrada. Com essa informação, toda vez que um novo vírus aviário se espalha em algum lugar do mundo, como nos porcos chineses anos atrás ou em aves selvagens na costa do Brasil, meses atrás, vai ser possível monitorar não somente o espalhamento da doença, mas o aparecimento dessas mutações. Caso elas apareçam na população infectada é certeza que esse vírus pode burlar nossas defesas e causar uma pandemia. É mais uma arma para ser usada pelos centros de vigilância sanitária e epidemiologistas para tentar conter ou reduzir uma nova pandemia entre seres humanos.
Mais informações: BTN3A3 evasion promotes the zoonotic potential of influenza A viruses. Nature 2023
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