Ao contrário da maioria dos seres vivos, o genoma do SARS-CoV-2 não é composto por DNA, mas por uma longa molécula de RNA. Para se reproduzir dentro das células o vírus utiliza uma enzima produzida por ele mesmo, capaz de duplicar essa molécula de RNA. O interessante é que essa enzima não existe em células humanas e por esse motivo inibidores específicos são drogas que podem impedir a reprodução do vírus. Um deles, chamado EIDD-2801, já está em Fase 2/3 de estudos clínicos e se tudo correr bem pode estar disponível como um comprimido no futuro.
Mas o que quero contar é um dos trabalhos que levaram os cientistas a acreditar num futuro brilhante para o EIDD-2801. Os cientistas gostariam de estudar diretamente o estrago que o Sars-CoV-2 faz no pulmão das pessoas infectadas. Como não é eticamente aceitável retirar o pulmão de pessoas durante a infecção, a solução é estudá-la em camundongos e macacos. Mas mesmo um macaco não se comporta como um ser humano quando infectado. É aí que entra a criatividade.
Os cientistas descobriram que se você transplantar um pedaço de pulmão humano debaixo da pele das costas de um tipo de camundongo que não rejeita transplantes, um pequeno pulmão ali se desenvolve e suas células e outros componentes são humanos. As veias e artérias humanas se ligam às do camundongo e você acaba com um quase pulmão humano no corpo de um camundongo. E aí você pode estudar tudo o que acontece quando um coronavírus infecta um pulmão humano. E pode injetar drogas no camundongo para observar o que acontece nesse pulmão.
Na primeira parte do trabalho, os cientistas mostram que esse pulmão é infectado por todos os tipos de coronavírus, incluindo o Sars-CoV-1 e o Mers-CoV. Mas grande parte do estudo é dedicada a demonstrar que uma infecção desse pulmão pelo Sars-CoV-2 é idêntica à que ocorre em seres humanos. O vírus se liga ao mesmo receptor, invade as mesmas células, provoca a morte das células atacadas e o acúmulo de células mortas nos alvéolos, além de provocar o aparecimento de trombos e a tempestade de citocinas. Como nos seres humanos, os primeiros sintomas aparecem dois dias após a infecção. Ou seja, esse pulmão humano crescido dentro do camundongo responde da mesma maneira à invasão do Sars-CoV-2 dentro de um pulmão de um ser humano.
Na segunda parte do trabalho os cientistas estudaram o que acontece com a infecção pelo Sars-CoV-2 se o camundongo é tratado com o EIDD-2801. O experimento é simples: você infecta o pulmão com o vírus e depois trata o camundongo com o EIDD-2801, espera um tempo, sacrifica o camundongo, e observa o que acontece em seu pulmão. Foram inúmeros os experimentos, mas aqui vai o que me pareceu mais relevante.
Se o tratamento com a droga começa dois dias após a infecção, quando a destruição do pulmão já está em andamento, e dura dois dias, a quantidade de vírus no pulmão diminui 25 mil vezes quando comparada com um pulmão não tratado. Ou seja, quase elimina o vírus. E se você espera mais dois dias para começar o tratamento, a redução da quantidade de vírus é de 96%. E mais: se você der ao camundongo a droga antes da infecção, esta praticamente não ocorre, pois a quantidade de vírus é reduzida 100 mil vezes.
Em outras palavras essa droga pode ser capaz de evitar a infecção se tomada de maneira profilática, e capaz de curar a doença se tomada logo que aparecem os sintomas. Imagine o cenário: você aparece com sintoma, faz um PCR, o resultado é positivo. Você passa na farmácia, compra a droga e vai para casa descansar. Mas para que isso ocorra o EIDD-2801 ainda tem de passar na Fase 3 dos ensaios clínicos. Vamos ter de esperar alguns meses para saber.
Mas é uma boa notícia. MAIS INFORMAÇÕES: SARS-COV-2 INFECTION IS EFFECTIVELY TREATED AND PREVENTED BU EISS-2801. NATURE.* É BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS, ESCORREGADOR DE MOSQUITO; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS
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