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Opinião | O que você prefere: poluição ou aquecimento?

Cientistas apontam que a redução de poluentes atmosféricos emitidos por navios contribuiu para maior incidência da energia solar sobre a Terra

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Foto do author Fernando Reinach

Agora é oficial, o ano de 2024 foi o mais quente já registrado. Ninguém mais duvida que nosso planeta está esquentando. Em 2024, pela primeira, vez atingimos 1,5ºc acima das temperaturas da era pré-industrial. A alta das temperaturas foi muito maior do que a esperada pelos mais pessimistas e desencadeou debate acirrado.

Será que 2023 e 2024 são pontos fora da curva e o aquecimento continua no ritmo das décadas anteriores? Ou será que esses são os primeiros anos de uma nova tendência, sinalizando aumento na velocidade do aquecimento? Se o segundo caso for verdade podemos dar adeus aos limites do acordo de Paris. Eles já foram superados.

Redução na quantidade de enxofre emitida pelos grandes navios pode ter influenciado as temperaturas do planeta nos últimos anos Foto: Sinechana /Adobe Stock Gerado com IA

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Centrais nesses debates são as medidas que indicam que existiram eventos extraordinários nos dois últimos anos que justificariam esses pontos fora da curva. Um forte candidato são as anomalias na duração e intensidade do sistema El Niño, que provocou aquecimento anormal do Oceano Pacífico.

Mas outro fator que contribuiu para o aquecimento foi a alteração no combustível usado pelos navios que cruzam os oceanos.

Grande parte dos combustíveis fósseis, como gasolina e óleo diesel, contém compostos que têm enxofre na sua composição. Quando queimados nos motores, liberam dióxido de enxofre na atmosfera. Esse dióxido é toxico e pode ficar até 20 dias na atmosfera.

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Mas se houver umidade se transforma em ácido sulfúrico. Além de ser tóxico para humanos, o acido sulfúrico acidifica a chuva, causando a chuva ácida, que no passado foi responsabilizada pela destruição de florestas na Europa.

Devido a essas características, o teor de enxofre nos combustíveis usados por veículos terrestres e indústriais passou a ser regulado. A remoção do enxofre nas refinarias é um processo caro, mas que foi adotado na maioria dos países. É por isso que a fumaça dos ônibus deixou de ser tão escura quanto era na minha infância. Foi um progresso no controle da poluição.

O problema é que essa redução na quantidade de enxofre emitida por navios transatlânticos só se tornou obrigatória em 2020. Afinal, pensavam os reguladores, soltar fumaça em alto mar é menos grave do que soltar nas cidades. Em 2020 esse combustível começou a ser regulado e foi exigida redução de 80% na emissão de enxofre pelos navios. E isso se concretizou em 2023 e 2024.

Quando os navios que emitiam enxofre são rastreados por satélites, foi demonstrado que deixam rastros de nuvens poluentes que permaneciam na atmosfera por até 20 dias. Algo semelhante aos traços brancos deixados pelos aviões, mas com tamanho e duração maiores. Essas nuvens de poluição podem ser observadas por satélites e foi demonstrado que elas refletem parte da luz solar que chega à atmosfera.

Pois bem, com a introdução a partir de 2023 dos combustíveis sem enxofre essas nuvens que refletem a luz solar deixaram de existir e a luz que antes era refletida passou a incidir diretamente nos oceanos, aumentando a luz absorvidas pelos oceanos e, portanto, seu aquecimento. É como se um espelho tivesse sido retirado da atmosfera e a luz solar antes refletida agora chegasse ao mar.

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Os cientistas calcularam quanto a mais de energia solar atingiu a Terra em 2023 e 2024 devido à remoção desse poluente. Chegaram à conclusão que isso equivale a 0,12 watts por metro quadrado.

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Essa energia chega ao oceano e é imediatamente convertida em calor, contribuindo para o aquecimento global de 2023 e de 2024. Esses mesmos cálculos indicam que essa quantidade de energia não é suficiente para explicar o aquecimento dos últimos anos, mas essa substituição de combustíveis vai aumentar a temperatura em 0,01ºC por década.

Essa é uma descoberta interessante por dois motivos. Primeiro, uma medida que visa a combater a poluição protegendo nossos pulmões e a vida terrestre, aumenta o aquecimento global, o que por sua vez prejudica os seres vivos e o ambiente em que vivemos. Veja como é complicada nossa interação com a atmosfera.

Em segundo lugar, esse é um experimento que demonstra diretamente que partículas presentes na atmosfera aumentam a luz refletida e diminuem o aquecimento. Essas modificações na atmosfera, injetando nela partículas refletoras, vêm sendo propostas como uma maneira de amenizar o aquecimento global. Experimentos nessa direção vem sendo feitos em muitos países. Claro que nesse caso o experimento foi feito ao contrário, e demonstrou que a retiradas dessas partículas aumenta o aquecimento.

Se você pudesse escolher entre poluir com enxofre ou aquecer a atmosfera, o que preferiria?

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Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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