A cada primavera, mais de 200 mil gansos-patolas do norte — aves marinhas robustas com plumas deslumbrantes brancas — viajam para a costa do leste do Canadá. Lá, cobrem falésias à beira-mar e afloramentos rochosos, reproduzindo-se em colônias enormes antes de voarem de volta para o sul para o inverno.
Mas, em maio de 2022, enquanto muitas fêmeas estavam se preparando para botar seus ovos, as aves começaram a morrer em massa. “Milhares de gansos-patolas do norte começaram a aparecer em nossas praias,” afirma Stephanie Avery-Gomm, bióloga de aves marinhas e cientista pesquisadora na Environment and Climate Change Canada.
O culpado: um vírus da gripe aviária, conhecido como H5N1, que havia chegado recentemente à América do Norte. Nos meses seguintes, o vírus se espalhou pela região, matando dezenas de milhares de gansos-patolas do norte.
O massacre foi “devastador”, disse Avery-Gomm. “Tem de endurecer seu coração para trabalhar com este tipo de escala de mortalidade.”
Desde que uma nova versão do H5N1 surgiu em 2020, cientistas têm se tornado cada vez mais preocupados que o vírus possa desencadear a próxima pandemia, infectando pessoas ao redor do globo. Mas para as aves selvagens do mundo, a perspectiva de um surto mortal e descontrolado não é teórica.
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O vírus tem dizimado populações aviárias ao redor do globo, com contagens de mortes assombrosas: a estimativa é de 24 mil corvos-marinhos do Cabo mortos na África do Sul, mais de 57 mil pelicanos reportados mortos no Peru.
“A escala das mortalidades é verdadeiramente sem precedentes,” afirma Johanna Harvey, ecologista de doenças aviárias na University of Maryland (EUA). “Não há nada comparável historicamente.”
Aves selvagens são mal monitoradas, e o verdadeiro impacto global permanece desconhecido, assim como as consequências a longo prazo. Mas alguns anos após o surto aviário, está claro que o vírus é um novo perigo indesejável para animais que já estão sob intensa ameaça de mudanças climáticas, perda de habitat, pesca excessiva e outras atividades humanas.
“Essa doença não está sendo introduzida num ecossistema lindo, preservado e resiliente,” diz Ruth Cromie, coordenadora de uma força-tarefa das Nações Unidas sobre gripe aviária e vida selvagem. “Esta é uma doença que está adicionando pressões a espécies que já estão realmente no limite.”
E acrescenta: “Sinto que o pior ainda não acabou.”
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Historicamente, o vírus H5N1, que existe há décadas, afetou principalmente aves de criação. Mas o vírus está constantemente evoluindo, e a versão que surgiu em 2020 “era um tipo diferente de besta,” diz Rebecca Poulson, especialista em gripe aviária na University of Georgia (EUA). Parecia muito melhor adaptada a aves selvagens, que logo espalharam o patógeno pelo mundo todo, para lugares tão remotos quanto a Antártida.
Aves selvagens não foram apenas vetores para o vírus — elas também foram vítimas dele, e relatórios de gaivotas e gansos mortos começaram a se acumular. “Tivemos muitos relatos iniciais dessas aves literalmente caindo do céu enquanto sucumbiam à doença”, afirma Rebecca.
Desde outubro de 2021, mais de 117 mil aves selvagens mortas — de 315 espécies em 79 países — foram reportadas à Organização Mundial da Saúde Animal. Mas como muitas mortes de aves selvagens nunca são detectadas, muito menos reportadas, o verdadeiro escopo do problema provavelmente é bem maior — o que poderia ser a maior ameaça às aves selvagens “em uma geração,” segundo Gregorio Torres, que lidera o departamento de ciências da organização.
Até agora, o impacto foi desigual, com alguns tipos de aves sofrendo perdas especialmente grandes. Aves marinhas, por exemplo, “estão levando uma surra,” diz Michelle Wille, especialista em gripe aviária na Universidade de Melbourne, na Austrália.
Essas disparidades podem decorrer de diferenças em suscetibilidade biológica e comportamento. A maioria das aves marinhas reproduz em grandes colônias, dando ao vírus ampla oportunidade para se espalhar. Gansos-patolas do norte têm 53 colônias reprodutivas em ambos os lados do Oceano Atlântico. Eom 2022, taxas de mortalidade incomumente altas foram documentadas em 75% delas.
O vírus também dizimou populações de gaivotas. Exterminou cerca de 36% dos pelicanos nativos do Peru e 13% dos pinguins de Humboldt do Chile. Ele matou tantos grandes skuas que a Grã-Bretanha adicionou as aves à sua “lista vermelha” de espécies de maior preocupação de conservação.
Não há evidências de que o vírus tenha levado qualquer uma dessas espécies à beira da extinção, e especialistas têm visto sinais encorajadores de imunidade em alguns sobreviventes. Mas perdas em larga escala poderiam tornar essas populações mais propensas a sucumbir a qualquer nova ameçaa, seja outro surto, uma onda de calor ou um derramamento de óleo. “Elas podem ser empurradas ainda mais para o limite,” diz Samantha Gibbs, veterinária no U.S. Fish and Wildlife Service.
Aves marinhas também tendem a ser lentas para se reproduzir, o que significa que algumas populações podem levar décadas para se recuperar, alertam os cientistas.
H5N1 também teve impacto pesado sobre aves de rapina, que podem adoecer após predar outras aves infectadas ou escavar suas carcaças. Nos Estados Unidos, o vírus atingiu o próprio emblema nacional: a águia-careca. A espécie outrora ameaçada de extinção fez um retorno vigoroso depois que o pesticida DDT foi banido na década de 1970.
Mas, desde a chegada do H5N1, cientistas têm observado picos nas mortes de águias-carecas e declínios acentuados no sucesso reprodutivo das aves. “A última vez que vimos isso foi na era DDT,” diz William Bowerman, ecologista de vida selvagem na University of Maryland (EUA), que tem estudado águias-carecas há mais de 40 anos.
Outra espécie de preocupação nacional tem sido o condor da Califórnia. Nos anos 1980, a espécie diminuiu para apenas 22 indivíduos. Até o fim de 2022, um programa intensivo de conservação havia reconstruído a população selvagem para quase 350 aves.
Então, a gripe aviária matou mais de 20. Oficiais federais estavam tão preocupados que concordaram em começar uma ofensiva de vacinação. “Foi um esforço para colocar tudo o que pudéssemos em direção a salvá-los,” Gibbs disse.
Até agora, cerca de 250 aves receberam pelo menos uma dose do imunizante, mas a eficácia a longo prazo permanece incerta, e a vacinação não será uma estratégia viável para a maioria das populações de aves selvagens, disseram os especialistas.
Aves não são as únicas vítimas da doença
As aves não são os únicos animais selvagens que foram atingidos pelo vírus. Algumas espécies de mamíferos marinhos também sofreram perdas significativas, especialmente na América do Sul, onde pelo menos 24 mil leões-marinhos morreram no ano passado.
Na Argentina, o vírus matou cerca de 17,4 mil filhotes de elefante-marinho do sul, estimaram os cientistas. O surto, que eclodiu durante a temporada de reprodução do ano passado, também parece ter eliminado muitos dos adultos mais reprodutivamente bem sucedidos, que tipicamente dominam as praias nessa época do ano.
Em 2024, as colônias de reprodução estão apenas um terço do tamanho típico, e os elefantes-marinhos que apareceram são jovens, pequenos e inexperientes, diz Marcela Uhart, que dirige o programa de saúde da vida selvagem na América Latina na University of California, Davis.
Isso poderia resultar em taxas mais baixas de sucesso reprodutivo ou ter outros efeitos em cadeia difíceis de prever. “É esse lembrete de que podemos estar monitorando populações que estavam indo bem,” afirma ela. “E, de repente, algo como a gripe aviária, surge e realmente bagunça as coisas a longo prazo.”
Mesmo em populações que agora desenvolveram alguma imunidade ao vírus, não está claro quanto tempo essa proteção durará, especialmente à medida que o H5N1 continua a evoluir.
“Devemos encarar essa trégua como apenas isso — uma parte potencialmente normal desse processo —, mas realmente estar preparados para esses vírus afetarem animais novamente”, continua Rebecca.
Cientistas seguem gravemente preocupados com a perspectiva de mortes em massa na Antártida, onde o H5N1 chegou apenas recentemente. “Este vírus não terminou nessa parte do mundo ainda,” Wille disse. E ele ainda não chegou à Austrália ou Nova Zelândia, ambos lar de aves únicas e altamente ameaçadas de extinção.
Neste ponto, especialistas concordam, o vírus tornou-se tão disseminado em aves selvagens que não pode ser eliminado. Mas conservacionistas e oficiais podem trabalhar para garantir que populações de aves sejam grandes, saudáveis e resilientes o suficiente para sobreviver a ele.
Isso exigirá enfrentar outras ameaças, como poluição e pesca excessiva, e garantir que as aves tenham acesso a um habitat amplo, afirma Ashleigh Blackford, coordenadora de recuperação do condor da Califórnia para o U.S. Fish and Wildlife Service.
Essas ações, ela disse, podem ajudar a garantir que as aves selvagens “sejam mais resilientes às mudanças climáticas, aos vírus, ao que quer que esta Terra ou nós lancemos em seu caminho.”
Este artigo foi originalmente publicado em The New York Times.
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