A transmissão da abertura da Copa do Mundo deixou muita gente frustrada e com dúvidas sobre o que aconteceu com a demonstração do projeto Andar de Novo, do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, que prometia fazer uma paraplégico levantar da cadeira de rodas, caminhar no gramado da Arena Corinthians e chutar uma bola de futebol, usando uma veste robótica (exoesqueleto) controlada pelo cérebro.
Em entrevista ao Jornal Nacional depois do evento, Nicolelis disse que a demonstração foi executada em 16 segundos. Na transmissão da TV ao vivo, porém, foi possível ver o paraplégico vestindo o exoesqueleto por apenas 2 segundos, parado em pé, e fazendo apenas um pequeno movimento com a perna direita para tocar uma bola colocada diretamente à sua frente.Dois participantes do projeto, um de cada lado do robô, utilizam hastes presas ao exoesqueleto para mantê-lo estável na plataforma.
Muitos espectadores ficaram indignados, e culparam a televisão por não ter mostrado aquilo que era esperado da demonstração (que a pessoa andasse). Procurada pelo Estado na noite de ontem, porém, a assessoria de imprensa do projeto confirmou que nenhum outro movimento foi realizado pelo exoesqueleto, além daquele que aparece nos 2 segundos de transmissão da TV. O paciente não se levantou de uma cadeira de rodas, e não andou em nenhum momento. Ele foi colocado em campo já em pé, transportado por um carrinho de golf equipado com um pequeno "guindaste" na parte de trás. Não deu nenhum passo.
"O que foi prometido, foi entregue. Depois de 17 meses de trabalho insano, a missão foi cumprida integralmente", afirmou Nicolelis, pelo Twitter, no dia seguinte ao evento -- contradizendo todas as promessas que havia feito anteriormente. "Resumo: um brasileiro, portador de paralisia de mais da metade corpo, realizou um chute c/ um exo sob controle do cérebro e sentiu o chute." O cientista critica a imprensa brasileira e diz que "a FIFA deveria responder pela edição das imagens que impediu q a demonstração fosse transmitida na integra. Responsabilidade é tda dela". A Fifa afirma que mostrou aquilo que foi ensaiado.
As únicas imagens de pacientes caminhando de fato com o exoesqueleto são as que foram postadas na página do projeto no Facebook (http://migre.me/jP953). Em todas elas, o robô (que pesa entre 60 e 70 kg) está pendurado por cabos a uma estrutura de metal acima dele, que serve para sustentar seu peso. Não foi divulgada nenhuma imagem de pacientes se levantando de uma posição sentada ou caminhando com o exoesqueleto de forma autônoma, como seria necessário para realizar a demonstração da Copa. O que leva a entender que o exoesqueleto não é capaz de ficar em pé e caminhar por conta própria.
Os vídeos no Facebook emocionam. Os detalhes científicos sobre o que está acontecendo ali, porém, só poderão ser avaliados de forma independente por outros pesquisadores uma vez que os dados técnicos dos experimentos estejam publicados em revistas científicas especializadas -- algo que, segundo a assessoria de imprensa do projeto, deverá ocorrer nos próximos meses. Por enquanto, não há nenhuma evidência científica disponível que permita determinar qual é o grau ou a qualidade do comando cerebral envolvido no controle do robô.
No dia 15, também via Facebook, Nicolelis chamou a atenção para um estudo publicado por ele na revista Nature Methods. "Para quem pediu que a gente publicasse nossos dados, segue a capa da Nature Methods do mês de junho que retrata o nosso artigo", escreveu o cientista -- sem esclarecer para o público leigo, porém, que os experimentos relatados nesse trabalho não têm nenhuma relação direta com o projeto Andar de Novo ou com a demonstração da Copa. O trabalho é baseado numa técnica diferente (de implantes cerebrais, em vez de eletroencefalografia), foi realizado em macacos sadios na Universidade Duke e faz referência apenas à metodologia de registro da atividade cerebral dos animais por meio de eletrodos, sem incluir qualquer demonstração de recuperação de atividades motoras perdidas por lesões medulares.
Para mais informações sobre as diferentes técnicas envolvidas, leia a reportagem: Cientista mudou estratégia e optou por técnica não invasiva, mais segura, de 1 de junho (na qual o estudo da Nature Methods já é citado).
Decepção. A deputada federal Mara Gabrilli, que é tetraplégica há 20 anos e pratica técnicas de reabilitação neuromotora diariamente, não se convenceu com os vídeos postados no Facebook. Segundo ela, os pacientes estão caminhando numa postura totalmente inadequada: sem estabilidade, inclinados para a frente e tocando o solo com as pontas dos pés. "Isso não é uma posição de marcha", disse ela, em entrevista ao Estado. "Se você tirar os cabos, as pessoas vão cair para frente na hora."
Antes da demonstração da Copa e da divulgação dos vídeos, Mara era admiradora declarada de Nicolelis e se dizia ansiosa pela caminhada histórica que aconteceria no dia 12. "Que decepção", declara agora. "Ele não entregou o que prometeu e iludiu um monte de pacientes." Ela disse que vai se empenhar para que o laboratório de robótica que foi montado por Nicolelis num prédio da AACD seja deixado como legado do projeto para a instituição.
Há vários outros projetos de pesquisa no mundo envolvendo esse tipo de tecnologia, voltados para a reabilitação de pacientes paraplégicos, tetraplégicos e amputados. Entre eles, alguns exoesqueletos que não utilizam controle cerebral e que já estão disponíveis comercialmente, como o da empresa californiana Ekso Bionics, que já é usado em vários centros de reabilitação ao redor do mundo. (veja vídeo abaixo)
Para mais informações sobre o projeto, veja: Nicolelis e o show da Copa
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Post atualizado às 15h45 do dia 16.
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