Foto de índios botocudos de Walter Garbe (1909), reproduzida do livro Brasil - 500 Anos de Povoamento, do IBGE (Divulgação)
Herton Escobar / O Estado de S. Paulo
Análises genéticas de crânios antigos guardados no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro revelaram um componente inesperado no genoma de uma linhagem extinta de índios brasileiros chamados botocudos (ou aimorés).
Vasculhando o DNA mitocondrial desses índios, em busca de pistas sobre o povoamento das Américas, pesquisadores encontraram algumas marcas genéticas características de povos polinésios, das ilhas do Pacífico.
O estudo não propõe que houve uma migração de polinésios para as Américas (altamente improvável, tanto do ponto de vista geográfico quanto cronológico), mas sugere que, de alguma forma indireta, pessoas de origem ou ancestralidade polinésia cruzaram com a linhagem dos botocudos na mata atlântica do sudeste brasileiro. Só não se sabe quando, onde nem como isso teria acontecido.
"Precisamos achar uma explicação para isso", diz o pesquisador Sérgio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais, que coordenou o estudo.
O trabalho, publicado na revista PNAS, propõe quatro caminhos que o DNA polinésio poderia ter percorrido para chegar aos botocudos. O cenário mais plausível, segundo Pena, é que ele tenha chegado no início do século 19, com escravos de Madagascar, país africano onde há uma herança genética polinésia. Pode ter havido uma miscigenação entre os escravos e os botocudos, ou mulheres africanas podem ter sido raptadas pelos índios e tido filhos com eles.
Os botocudos ocupavam áreas dos atuais Estados de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia. Eles não aceitavam a autoridade portuguesa e foram praticamente extintos no fim do século 19, segundo o estudo.
As marcas polinésias foram encontradas em amostras extraídas dos dentes de 2 dos 14 crânios pesquisados para o trabalho. Os resultados moleculares são robustos, segundo Pena, e foram confirmados independentemente por pesquisadores da Universidade de Copenhague, que também assinam o estudo. O fato de as marcas aparecerem em apenas alguns indivíduos indica que a miscinegação foi limitada, talvez restrita a alguns grupos de botocudos.
O DNA mitocondrial é aquele que está dentro das mitocôndrias, passado exclusivamente de mãe para filho (herança materna, sem influência do pai), já que o espermatozoide tem muito menos mitocôndrias do que o óvulo, e estas desaparecem após a fertilização.
Os outros três possíveis cenários apresentados no trabalho para explicar a inserção da marca polinésia no DNA mitocondrial botocudo são:
1) Cenário pré-colombiano mais remoto: Que os ancestrais polinésios cruzaram geneticamente com os ancestrais ameríndios que cruzaram geograficamente o estreito de Bering entre 15 mil e 20 mil anos atrás, quando um período glacial reduziu o nível dos oceanos e expôs uma ponte terrestre entre os continentes asiático e americano. Cenário extremamente improvável, considerando que a idade estimada do haplótipo (conjunto de marcas genéticas que caracterizam uma população) polinésio, de aproximadamente 9 mil anos, é bem menor que a do povoamento das Américas. As ilhas do Pacífico só foram povoadas 3 mil anos atrás.
2) Cenário pré-colombiano mais recente: Que houve alguma miscigenação entre polinésios e ameríndios antes da "descoberta" da América pelos europeus. Há algumas evidências arqueológicas, não conclusivas, de que pode ter havido contato entre esses dois grupos antes de Colombo (por exemplo, ossos de galinha polinésia no Chile e batata-doce americana na Ilha de Páscoa). Porém, mesmo que esse contato tenha ocorrido e alguns polinésios tenham chegado à costa oeste da América do Sul, eles ainda teriam de ter cruzado os Andes e chegado até o interior do Brasil para cruzar com os índios brasileiros. "Achamos que esse cenário e improvável demais para ser considerado seriamente", escrevem os pesquisadores na PNAS.
3) Cenário mais recente: Que o haplótipo polinésio é herança dos escravos trazidos da Polinésia para o Peru em meados do século 19 (por volta de 1860). Porém, não há evidências de que esses escravos tenham cruzado os Andes ou mesmo deixado alguma herança genética na população peruana atual. Os 300 escravos que ainda estavam vivos quando a escravidão foi abolida no Peru em 1896 foram enviados de volta para a Polinésia.
Assim, conclui Pena: "O cenário dos escravos de Madagascar é o mais plausível, mas não estamos postulando nada e estamos mantendo a mente aberta para novos cenários que poderão aparecer no futuro."
Imagine só.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.