Passado um ano da publicação da nova lista de espécies aquáticas ameaçadas de extinção do Brasil, quase nada foi colocado em prática para mudar o destino dessas espécies. A portaria do Ministério do Meio Ambiente (MMA) que instituiu a lista, em 17 de dezembro de 2014, está suspensa desde junho por uma ação judicial movida pela indústria de pesca. Nenhuma das ações de proteção ambiental previstas no texto foram implementadas; e as iniciativas de ordenamento das atividades pesqueiras que estavam em andamento dentro do governo foram paralisadas pela extinção do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), em outubro.
A Portaria 445 previa a proibição da pesca de centenas de peixes, crustáceos e moluscos ameaçados de extinção, incluindo várias espécies de importância comercial, como garoupas, badejos e cações -- gerando um confronto imediato com o setor pesqueiro. Pressionado, o MMA adiou a entrada em vigor das proibições e abriu diálogo com o MPA para revisar o status e as regras de captura de algumas espécies. Com a suspensão da portaria e o fim do Ministério da Pesca, quase tudo foi paralisado. A maioria das espécies ameaçadas continua a ser pescada sem restrições.
Apenas quatro planos de recuperação de espécies seguem em elaboração: para o caranguejo guaiamum, o bagre-branco, o cherne-poveiro e os peixes-papagaio, também conhecidos como budiões -- espécies importantes para a pesca artesanal, que deverão receber regulamentação específica. (Veja vídeo abaixo e mais informações sobre os budiões no final desta reportagem.)
"Independentemente da situação legal da portaria, é um planejamento que precisa ser feito. São espécies que estão em situação ruim e precisam ser recuperadas; esse á o ponto central", diz o biólogo Guilherme Dutra, diretor do Programa Marinho da ONG Conservação Internacional no Brasil, que participa das discussões.
A reação inicial da comunidade científica e ambientalista à Portaria 445 não foi de todo positiva. Muitos pesquisadores e conservacionistas criticaram a ideia de uma proibição generalizada, sem nenhuma atenção às peculiaridades de cada espécie e cada pescaria -- o que poderia favorecer mais a ilegalidade do que a conservação. Ainda assim, a suspensão da portaria foi uma ducha de água fria para todos.
"O processo judicial foi algo inesperado, que emperrou todo o diálogo. As conversas eram difíceis, mas estavam caminhando", avalia Dutra.
Paralisação judicial
A ação foi movida no Tribunal Regional Federal de Brasília por três entidades: o Conselho Nacional de Pesca e Aquicultura (Conepe), a Federação Nacional dos Engenheiros de Pesca do Brasil (FAEP-BR) e pela Confederação Nacional dos Pescadores e Aquicultores (CNPA), argumentando que o MMA não tinha competência para editar a medida sem a participação do Ministério da Pesca. O desembargador Jirair Meguerian concordou, e suspendeu a portaria.
O MMA recorreu, não não conseguiu reverter a decisão. A pasta avalia agora qual é a melhor estratégia para seguir em frente (ou não) com o processo. A extinção do MPA -- que foi absorvido pelo Ministério da Agricultura -- colocou o debate no limbo. A pasta agrícola ainda não definiu como a gestão pesqueira será incorporada à sua estrutura administrativa.
"Estávamos na iminência de inaugurar uma nova era na gestão pesqueira do País", diz Fabio Hazin, pesquisador da Universidade Federal Rural de Pernambuco, que era secretário de Planejamento e Ordenamento de Pesca no extinto MPA. Ele destaca a criação, em setembro, dos Comitês Permanentes de Gestão (CPGs) e de seus subcomitês científicos, encarregados de elaborar planos de gestão, pesquisa e monitoramento dos recursos pesqueiros, em parceria com os ministérios do Meio Ambiente e Ciência e Tecnologia. "Agora está tudo em compasso de espera, até sabermos qual será o novo desenho administrativo e o grau de prioridade que a pesca terá no Ministério da Agricultura."
Leia também: Quanto se pesca no Brasil? Ninguém sabe!
Proibição vs. manejo
Com relação à Portaria 445, Hazin avalia que ela foi promulgada de forma "equivocada", desprovida de estratégias adequadas para atingir seus objetivos. "Temos convicção de que simplesmente proibir a captura não contribui para a conservação", afirma.
"Apesar de importantíssima em muitos momentos e regiões, a simples proibição do desembarque, comercialização e transporte de espécies ameaçadas pode não ser suficiente", diz a diretora geral da ONG Oceana, Monica Peres, que participa ativamente das discussões. "A única forma de recuperar uma população ou estoque sobrepescados é pela elaboração e implementação de planos de recuperação e manejo, construídos por especialistas e discutido com a sociedade. É assim que se faz em qualquer lugar do mundo."
Mesmo suspensa, a portaria serviu de base para várias ações nesse período" - Ugo Vercillo, diretor de Conservação da Biodiversidade do MMA
A princípio, as proibições de pesca deveriam ter entrado em vigor em junho, seis meses após a publicação da portaria. Em negociações com o MPA e o setor pesqueiro, porém, o Ministério do Meio Ambiente estendeu o prazo para este mês (dezembro) e abriu brechas para a reavaliação do status de espécies consideradas de importância econômica e social. Todas essas medidas, porém, se tornaram inócuas com a suspensão da portaria.
Caso a portaria volte a vigorar, o MMA poderá publicar uma nova medida, para garantir que os trabalhos de reavaliação e planejamento possam continuar. "Se houver alguma espécie que se encaixe em alguma exceção, poderemos editar um novo ato", afirma Ugo Vercillo, diretor de Conservação da Biodiversidade do ministério. "Mesmo suspensa, a portaria serviu de base para várias ações nesse período", destaca. Além das criação dos CPGs e comitês científicos, ele destaca a renovação das moratórias à pesca do mero e do cherne-poveiro, em outubro, que se valeu dos dados científicos da lista de espécies ameaçadas da portaria.
Leia também: Cientistas monitoram meros ameaçados na costa do Paraná
Corrupção pesqueira
Quando o assunto voltar à pauta do governo em 2016, o cenário das negociações será diferente. Não só pelo fim do Ministério da Pesca, mas também por conta de mudanças no setor pesqueiro. Algumas da principais lideranças que se opunham à lista de espécies ameaçadas foram presas na operação Enredados da Polícia Federal, em outubro. Entre elas, o então superintendente do Ibama em Santa Catarina, Américo Ribeiro Tunes, e então presidente do Sindicato dos Armadores e da Indústria da Pesca de Itajaí e Região (Sindipi), Giovani Monteiro, que em janeiro organizou um bloqueio do Porto de Itajaí (principal núcleo pesqueiro do país) para pressionar o governo a revogar a Portaria 445. Segundo a PF, eles faziam parte de um esquema de venda de licenças, cobrança de propinas e acobertamento de práticas ilegais de pesca. Antes de ser preso, Monteiro já havia sido multado em R$ 1 milhão pelo Ibama, pela captura ilegal de tubarões no Rio Grande do Sul.
BUDIÃO-AZUL: O jardineiro dos recifes de Abrolhos
Uma das espécies ameaçadas que a princípio teria sua captura proibida pela Portaria 445, mas em vez disso deverá ganhar um plano de recuperação e regulamentação da pesca, é o budião-azul (Scarus trispinosus), um simpático peixe do grupo dos "papagaios", assim chamados por causa de seus bicos serrilhados, parecidos com os de um pássaro, que eles utilizam para mordiscar filamentos de algas da superfície dura dos recifes.
Exclusivo do Brasil e classificado como "em perigo" pela Portaria 445, o budião-azul já foi uma espécie comum em grande parte da costa brasileira, desde o norte do Rio de Janeiro até o Maranhão. Hoje, está restrito quase que exclusivamente à região do Banco do Abrolhos, no sul do Estado da Bahia e norte do Espírito Santo. E apesar de ainda ser avistado com facilidade por lá, sua população foi drasticamente reduzida pela sobrepesca nos últimos 15 anos, com declínios de até 90% em algumas localidades.
Uma notícia ruim não só para os budiões, mas para todo o ecossistema marinho dos Abrolhos, já que a sobrevivência de um afeta diretamente a saúde do outro. Assim como um jardim precisa de um jardineiro para mantê-lo livre de ervas daninhas, os recifes de coral precisam dos papagaios e de outros peixes herbívoros para manter o crescimento de algas sob controle.
Vídeo de um budião se alimentando no Parque Nacional Marinho dos Abrolhos. Crédito: Herton Escobar/Estadão
Ao se alimentar das jovens "gramíneas", os budiões evitam que elas se transformem em algas maiores, capazes de sufocar os corais. São os jardineiros dos recifes, essenciais à sua sobrevivência.
"Sem budião não tem coral", resume o pesquisador Ronaldo Francini Filho, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), especialista em ecologia de ecossistemas recifais. "É ele que mantém a 'careca' do recife em dia", completa o cientista, de cabeleira vasta e pinta de pirata.
Ninguém tem mais competência do que ele para brincar sobre o assunto. Há 15 anos Francini monitora a biodiversidade marinha de Abrolhos, num trabalho que envolve a realização de censos anuais de peixes e monitoramento da cobertura de algas nos recifes. A convite da ONG Conservação Ambiental (CI-Brasil), que dá apoio logístico ao trabalho, o Estado acompanhou a expedição mais recente do biólogo e sua equipe à região, em março, com o intuito de identificar e mapear áreas de reprodução do budião-azul.
Veja vídeo da expedição: Budião-Azul: O jardineiro dos recifes
Além de sua importância ecológica, o budião-azul tem grande valor social e econômico para as comunidades locais de pescadores, que têm nele sua principal fonte de renda. O grande desafio da sustentabilidade é recuperar as populações da espécie, e garantir a saúde do ecossistema, sem tirar o sustento dos pescadores -- se possível, aumentando a produtividade da pesca --, diz o gerente do Programa Marinho da CI-Brasil, Eduardo Camargo, que vive em Caravelas, a "capital de Abrolhos", no sul da Bahia.
"É possível fazer o manejo de pesca de uma espécie ameaçada, se esse manejo for regionalizado, bem planejado e bem executado", diz. Ele teme que uma simples proibição não seja efetiva e que, em vez de impedir as capturas, ela empurre os pescadores para a ilegalidade e aumente a pressão de pesca sobre outras espécies de budião, que estão em situação menos crítica, mas também ameaçados de extinção.
Plano de recuperação
Um grupo de trabalho foi criado no Ministério do Meio Ambiente para elaborar um plano de recuperação para as quatro espécies de budião listadas na Portaria 445: Scarus trispinosus (budião-azul), Scarus zelindae (papagaio-banana), Sparisoma axillare e Sparisoma frondosum (ambos chamados papagaio-cinza). Uma quinta espécie (Sparisoma amplum) também está sendo considerada no plano, apesar de não estar ameaçada de extinção, justamente por se prever que a pressão de pesca sobre ela irá aumentar.
A proposta que está na mesa é de permitir que essas espécies sejam pescadas dentro de unidades de conservação de uso sustentável, como Reservas Extrativistas (Resex) e Áreas de Proteção Ambiental (APAs) marinhas, mediante a elaboração de planos específicos de gestão e monitoramento da atividade -- por exemplo, com cadastro de pescadores, estabelecimento de cotas, épocas e tamanhos mínimos de captura.
"Estamos propondo fazer manejo onde é possível fazer manejo", explica o biólogo Matheus Freitas, pesquisador da Rede Abrolhos, contratado pelo MMA para elaborar o plano. "É uma estratégia audaciosa, mas a única viável para não fechar a pesca."
O plano deverá ser colocado em consulta pública já no início de 2016.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.