Em 16 de setembro de 2023, o mundo começou a tremer.
Uma gigantesca avalanche de rocha e gelo caiu nas águas profundas de um fiorde no leste da Groenlândia, desencadeando um megatsunami cujas ondas chegaram a uma altura de 200 metros. As ondas varreram as paredes do fiorde antes de fluir para o mar aberto.
Mesmo para esse canto da Groenlândia já propenso a avalanches, o colapso e o megatsunami foram chocantes por sua velocidade e ferocidade. Mas o que se seguiu foi ainda mais estranho.
O colapso desencadeou um rugido monótono que continuou por nove dias seguidos, forte o suficiente para ser detectado por sismômetros do mundo todo. E, no entanto, quando militares dinamarqueses visitaram o local, não encontraram nada de errado.
“É uma loucura”, disse Kristian Svennevig, geólogo do Serviço Geológico da Dinamarca e da Groenlândia e membro de uma equipe que investigou a anomalia. Ninguém tinha visto nada parecido.
“Imediatamente, um monte de pesquisadores uniu forças”, disse Finn Løvholt, pesquisador de tsunamis e deslizamentos de terra do Instituto Geotécnico Norueguês, em Oslo. A equipe cresceu rápido e passou a contar com especialistas de 15 países.
A Marinha dinamarquesa ofereceu ajuda. Mas nada do que se sugeriu como causa subjacente – de movimentos magmáticos peculiares a camadas de gelo oscilantes – parecia fazer sentido.
“Se não encontrássemos outra explicação, teríamos de optar por dragões ou monstros marinhos”, brincou Stephen Hicks, sismólogo do University College London.
Conforme relatado na revista Science, uma equipe de 68 cientistas conseguiu identificar a fonte do zumbido que estremeceu o mundo: um fenômeno natural bizarro, que martelou ritmicamente a superfície da Terra como um tambor.
“Não sei se alguém já viu algo nem remotamente parecido com isso antes”, disse Ben Fernando, sismólogo da Universidade Johns Hopkins que não participou do estudo. “É um resultado muito legal”.
A alegria de descobrir algo tão estranho deixou a equipe feliz. “Provavelmente foi por isso que muitas dessas pessoas se dedicaram à ciência”, disse Svennevig. “Com todos os nossos equipamentos e conhecimentos sofisticados, ainda assim, de vez em quando, descobrimos algo que não sabemos”.
O boom e o zumbido
Em 16 de setembro do ano passado, às 11h35, horário local do leste da Groenlândia, depois anos de aquecimento provocado pelas mudanças climáticas, uma cunha de gelo havia se afinado um pouco demais.
Na lateral do pico de uma montanha no topo do fiorde Dickson, cerca de 25 milhões de metros cúbicos de rocha – 10 vezes o tamanho da Grande Pirâmide de Gizé – caíram com estrondo. Nisso, atingiram uma geleira aninhada em um vale, destruindo-a.
Lubrificada por esse gelo e canalizada por uma ravina estreita, a avalanche de rocha e gelo se chocou contra o fiorde a mais de 160 quilômetros por hora. Ela “bateu na água como um soco”, disse Svennevig, coautor do estudo, e criou um megatsunami com altura média de onda de 110 metros.
Os megatsunamis geralmente se formam quando uma massa grande em rápido movimento mergulha em um corpo de água restrito. A combinação de ondas extremamente altas e velocidades altas tem um enorme potencial destrutivo.
Ao atravessar uma seção do fiorde de 35 quilômetros de extensão, o megatsunami destruiu sítios arqueológicos inuítes e armadilhas de caçadores do século 20. Depois escapou para o mar e inundou parcialmente um posto avançado científico e militar a 72 quilômetros de distância, na Ilha Ella, onde suas ondas (agora bem menores) causaram danos de US$ 200 mil. Felizmente, ninguém morreu nem ficou ferido.
O deslizamento de terra inicial e a avalanche de gelo e rocha que se seguiu fizeram muito barulho. Seu rugido acústico foi captado a mais de 3.300 quilômetros de distância, na Rússia, por um instrumento de infrassom projetado para detectar testes clandestinos de armas nucleares. Os sismômetros também captaram uma salva de eventos sísmicos de alta frequência, além de algumas ondas de baixa frequência provenientes da aceleração e desaceleração da massa na superfície da Terra.
O que veio a seguir não foi tão simples assim.
Os sismólogos captaram um zumbido profundo oscilando a 10,88 milihertz. “Essa coisa estava aparecendo como uma anomalia muito grande, se destacando como dedo machucado”, disse Hicks. Enquanto observavam sua persistência por um dia, depois outro, depois outro, pesquisadores do mundo todo ficaram atordoados. “O que está acontecendo aqui? Por que ainda estamos vendo isso?”, disse ele, relembrando o choque da época.
Quando o zumbido diminuiu, depois de nove dias estranhos, vários especialistas, de pesquisadores de tsunamis a geocientistas da Terra profunda, se reuniram em um vasto grupo de bate-papo em uma plataforma de código aberto chamada Mattermost. Eles debateram todas as explicações possíveis – da mais banal à mais inesperada.
Os sinais sísmicos não correspondiam à assinatura de um terremoto. Talvez uma camada de gelo, perturbada pela queda de rochas, estivesse vibrando como um sino. Talvez o deslizamento de terra tivesse forçado um pedaço de gelo a derreter, e essa água houvesse escorregado por um sistema de tubulação natural em alguma geleira, transformando-a em um instrumento e criando uma espécie de música geológica. Ou talvez o zumbido da Groenlândia fosse obra de algum vulcanismo incógnito?
Não se apresentou nenhuma evidência para sustentar qualquer uma dessas ideias. As pessoas começaram a brincar, se perguntando se eram alienígenas ou dragões tendo um acesso de raiva. “Sempre surge” algum tipo de leviatã quando anormalidades como esta confundem os sismólogos, disse Hicks.
Três dias depois do grande colapso, a marinha dinamarquesa inspecionou o fiorde para registrar a paisagem. Mas tudo parecia tranquilo. “É surpreendente que ainda estejamos vendo esse sinal sísmico circulando pelo mundo, sendo produzido naquela época em que eles foram lá e não notaram nenhuma perturbação perceptível”, disse Hicks.
Chapinhando
Apesar da escassez de evidências conclusivas, uma hipótese ficou de pé. Talvez a avalanche tivesse criado uma onda estacionária que estava chapinhando para frente e para trás no fiorde. Tal onda, chamada seicha, é comum em lagos e portos, embora normalmente tome forma na presença de ventos fortes.
Então, apenas três semanas depois do drama de setembro, um segundo sinal sísmico (mais fraco) emergiu do fiorde e se espalhou pelo planeta. Também pareceu ter sido desencadeado por um deslizamento de terra e foi acompanhado por um tsunami menor. Verificando registros sísmicos históricos que remontam ao início dos anos 1980, a equipe logo encontrou quatro eventos semelhantes. Se esses sinais eram de seichas, talvez o murmúrio de setembro também fosse.
Mas havia um problema gritante com a hipótese da seicha. A avalanche e o tsunami foram grandes e fortes, mas efêmeros. Não estava claro como eles poderiam gerar ou sustentar uma seicha de nove dias.
Em desespero, um membro da equipe tentou recriar o chapinhar prolongado na banheira da sua casa. Infelizmente, o fiorde Dickson não é reto e simétrico, então a banheira não era um modelo adequado. O nobre experimento não funcionou.
A equipe então tentou modelar o evento no computador. Nas primeiras tentativas de construir simulações numéricas do tsunami, eles não conseguiram reconstruir a seicha. Então, os militares dinamarqueses deram a eles acesso a pesquisas de sonar de alta resolução do fundo do fiorde. Foi quando as evidências começaram a aparecer.
Simulações que levaram em conta a profundidade variável do fiorde mostraram que o megatsunami tinha se estabilizado na forma de uma seicha com uma frequência dominante de 11,45 milihertz – muito próximo da frequência de 10,88 milihertz do zumbido estranho. A cadência de nove dias da seicha virtual correspondeu à da onda de verdade. A geografia instável do fiorde sugeriu que a energia da seicha só vazaria para águas abertas gradualmente, ajudando a explicar sua longevidade.
Suas simulações também revelaram o motivo pelo qual a marinha dinamarquesa não conseguira ver as ondas da seixa a olho nu. Ela estava chapinhando os 2,7 quilômetros de um lado a outro do fiorde a cada 45 segundos. Depois de apenas três dias, a altura da onda tinha decaído para apenas alguns centímetros, tornando-a quase imperceptível para qualquer pessoa presente.
O estudo ressalta que nosso mundo em rápido aquecimento pode nos afetar de maneiras surpreendentes. O deslizamento de terra que deu início ao megatsunami foi desencadeado por uma película de gelo derretida. “As mudanças climáticas estão à espreita no fundo desta história”, disse Svennevig. Os pesquisadores agora ficarão alertas para sinais de alerta semelhantes em outras partes glaciais do planeta vulneráveis a megatsunamis.
Nove dias de tremor global podem ser impressionantes, mas não são um recorde. O devastador terremoto e tsunami de magnitude 9,1 de Sumatra-Andaman, em dezembro de 2004, abalaram o planeta por 18 dias. E se acredita que o asteroide Chicxulub, que encerrou o reinado dos dinossauros, 66 milhões de anos atrás, sacudiu a Terra por meses depois do impacto.
A diferença com o pandemônio da Groenlândia é que, felizmente, ele causou danos mínimos e zero vítimas. A Terra simplesmente apresentou aos cientistas um enigma – e eles se dedicaram a resolvê-lo, só para saciar sua curiosidade. “É legal dizer: estamos detectando um sinal estranho – o que é isso?”, disse Jackie Caplan-Auerbach, sismóloga e geofísica da Western Washington University que não participou do novo estudo. Às vezes, disse Hicks, “esse tipo de ciência é a mais divertida”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
História original republicada com permissão da Quanta Magazine, uma publicação editorialmente independente apoiada pela Simons Foundation. Leia o conteúdo original em The Search for What Shook the Earth for Nine Days Straight
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