Os prêmios Nobel de ciência deste ano chamaram a atenção para a produção feminina. Fazia 11 anos que a premiação não contemplava três mulheres cientistas no mesmo ano. A raridade é regra. Em 120 anos de Nobel, os prêmios de ciência (Fisiologia ou Medicina, Física e Química) foram concedidos a 622 pessoas (dois homens receberam duas vezes o prêmio na mesma área). Apenas 3,68% delas eram mulheres.
Na terça-feira, 6, a astrônoma norte-americana Andrea Ghez recebeu o Nobel de Física e se tornou apenas a quarta mulher na história a obter a láurea. Na quarta, 7, foi a vez da microbiologista francesa Emmanuelle Charpentier e da bioquímica americana Jennifer Doudna receberem o de Química, elevando a sete o total de pesquisadoras consagradas na disciplina.
“Nós, astrônomas, costumávamos falar que tínhamos medo de que se a Andrea Ghez acabasse não levando o prêmio, só os homens ganhassem”, conta Duília de Mello, pesquisadora da Universidade Católica da América, em Washington.
Desde 1901, somente 22 pesquisadoras foram contempladas nas três áreas. Foram 23 prêmios para elas, sendo que Marie Curie levou dois – a única pessoa a receber prêmios de duas áreas distintas da ciência: Física e Química. Medicina responde pela maioria dos prêmios científicos femininos: 12.
Na Matemática a situação é ainda pior. A Medalha Fields, considerada o Nobel da matemática, é entregue desde 1936 aos melhores profissionais com menos de 40 anos. A primeira e única mulher a receber a honraria foi a iraniana Maryam Mirzakhani, em 2014. Dentre os 59 homens que já receberam o prêmio, está o brasileiro Artur Ávila, também agraciado em 2014.
A disparidade fica ainda mais clara quando se observam dados de produção científica no mundo. Nas últimas décadas, tem aumentado a presença de mulheres na academia e na realização de ciência de ponta, mas o prêmio ainda não reflete essa redução da desigualdade.
O relatório A Jornada do Pesquisador pela Lente de Gênero, publicado pela editora Elsevier em março deste ano, mostrou que em 20 anos houve um avanço da participação feminina em todo o mundo na publicação de artigos científicos.
O documento considerou a evolução da paridade de gênero entre cientistas de 15 países – além da União Europeia como bloco – a partir de publicações em periódicos da base Scopus em dois períodos: entre 2014 e 2018 e entre 1999 e 2003. Segundo o levantamento, passou de 29% para 38% o número de mulheres entre os autores de pesquisas em todo o mundo. O Brasil é um dos países onde mais cresceu essa participação. No início do século, 35,3% dos autores no País eram mulheres. Hoje elas já são 44,25%.
“Em média, somos 50% dos alunos na graduação, no mestrado e no doutorado”, afirma a física Márcia Barbosa, diretora da Academia Brasileira de Ciências (ABC). “As mulheres estão se capacitando cada vez mais para responder à questão dos salários mais baixos.”
Os maiores desafios começam a surgir depois. “Detectamos em nossos estudos que as mulheres têm menos capacidade de construir redes políticas. Não somos treinadas para isso desde novas, como os homens”, diz. “Quanto mais político for o cargo, menor é o porcentual de mulheres ocupando. O Nobel se enquadra nisso, depende de indicações, de votos.”
Para a bioquímica Helena Nader, ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e atual vice-presidente da ABC, a baixa presença de mulheres no Nobel é não somente uma “vergonha”, como um símbolo de que a ciência ainda é machista.
“Temos de lembrar que o Nobel funciona com votação. Considera-se o quanto o pesquisador é conhecido, além do mérito da pesquisa, que é o mais óbvio. A circulação é importante, mas as mulheres ainda circulam menos”, diz Helena.
“Também tem um lobby. E a maioria dos vencedores é dos Estados Unidos e da Europa, onde a proporção de mulheres ainda não é tão grande”, complementa. O estudo da Elsevier de fato mostrou que nos EUA, as mulheres são 33,6% dos autores de artigos científicos. Na Alemanha são 32%, no Reino Unido, 37,5%, e na França, 39%.
Apesar de a presença feminina estar aumentando, o impacto médio dos homens ainda é maior, critério que depende em grande parte de citação dos artigos por outros autores. “Vemos que nem mesmo as mulheres citam outras mulheres nos seus artigos”, comenta Vanderlan Bolzani, professora da Unesp e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Química.
Na análise da geneticista Mayana Zatz, da USP, a tendência é melhorar. "Essa geração de mulheres, relativamente jovens, tem a chance de desenvolver pesquisas com as mesmas oportunidades que os homens", afirmou. “Ainda há muita discriminação, claro, mas acho que essa geração já tem uma participação maior e a tendência é haver uma mudança substancial entre os agraciados por prêmios como o Nobel, com a presença crescente de mulheres.”
Injustiças históricas
A mudança seria importante até para a revisão de injustiças históricas no reconhecimento do trabalho das cientistas. A mais notória delas ocorreu com a química britânica Rosalind Franklin (1920-1958), cujas pesquisas foram cruciais para a descoberta da estrutura da dupla hélice do DNA. Ela, porém, nem sequer assinou o artigo de James Watson e Francis Crick. Em 1962, os dois ganharam o Nobel de Química junto com Maurice Wilkins sem nunca reconhecerem apropriadamente a importância do trabalho de Rosalind.
Outra injustiça famosa ocorreu com a física Jocelyn Bell, responsável pela descoberta dos pulsares, em 1967, quando ainda era uma estudante na Universidade de Cambridge. O Nobel que reconheceu essa importante descoberta, em 1974, no entanto, foi dado ao seu supervisor do sexo masculino, Antony Hewish.
Caso semelhante foi o de outra física Lise Meitner, cujo trabalho foi crucial para a descoberta da fissão nuclear (a quebra do núcleo do átomo). Entretanto, o Nobel de Química que reconheceu a importância dessa descoberta foi somente para o seu parceiro, Otto Hahn, em 1944.
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