A metafísica é o ramo da filosofia que lida com a estrutura profunda do mundo: a natureza do espaço, do tempo, da causalidade e da existência, os fundamentos da realidade em si. Em geral, é considerada não testável, uma vez que as suposições metafísicas são a base de todos os nossos esforços para fazer testes e interpretar resultados. Essas suposições geralmente passam despercebidas.
Na maioria das vezes, isso não chega a ser um problema. As intuições que temos sobre a maneira como o mundo funciona raramente entram em conflito com nossa experiência cotidiana. Em velocidades muito mais lentas do que a da luz ou em escalas muito maiores do que a quântica, podemos, por exemplo, presumir que os objetos têm características definidas e independentes de nossas medições, que todos nós compartilhamos um espaço e um tempo universais, que um fato para um de nós é um fato para todos nós. Enquanto nossa filosofia funciona, ela espreita em segundo plano, sem ser detectada, levando-nos a acreditar erroneamente que a ciência é algo separável da metafísica.
Mas nos confins inexplorados da experiência – altas velocidades e escalas minúsculas – essas intuições deixam de nos servir, impossibilitando que se faça ciência sem confrontarmos nossas suposições filosóficas. De repente, nos encontramos em um lugar onde não se pode mais distinguir ciência e filosofia com alguma clareza. Um lugar, de acordo com o físico Eric Cavalcanti, chamado de “metafísica experimental”.
Cavalcanti está carregando a tocha de uma tradição que se estende por uma longa linhagem de pensadores rebeldes que resistiram às linhas divisórias usuais entre a física e a filosofia. Na metafísica experimental, as ferramentas da ciência podem ser usadas para testar nossas visões filosóficas do mundo – que, por sua vez, podem ser usadas para entender melhor a ciência. Cavalcanti, brasileiro de 46 anos que é professor da Griffith University em Brisbane, Austrália, e seus colegas publicaram o resultado mais forte já alcançado na metafísica experimental, um teorema que impõe restrições rigorosas e surpreendentes à natureza da realidade. Eles agora estão projetando experimentos inteligentes, embora controversos, para testar nossas suposições não apenas sobre a física, mas também sobre a mente.
Embora possamos esperar que a injeção da filosofia na ciência resulte em algo menos científico, Cavalcanti diz que a verdade é o oposto. “Em certo sentido, o conhecimento que obtemos por meio da metafísica experimental é mais seguro e mais científico”, disse ele, porque examina não apenas nossas hipóteses científicas, mas também as premissas que geralmente ficam ocultas.
Linha divisória
A linha divisória entre ciência e filosofia nunca foi clara. Muitas vezes, é traçada ao longo da testabilidade. Diz-se que qualquer ciência que mereça esse nome é vulnerável a testes que possam refutá-la. Já a filosofia busca verdades imaculadas que pairam em algum lugar além do alcance sujo dos experimentos. Enquanto essa distinção estiver em jogo, os físicos acreditarão que podem continuar com a bagunça da “ciência real” e deixar os filósofos nas poltronas deles, cofiando o bigode.
Acontece que a distinção de testabilidade não se sustenta. Os filósofos há muito tempo sabem que é impossível provar uma hipótese. (Não importa quantos cisnes brancos você veja, o próximo pode ser preto.) É por isso que Karl Popper disse que uma afirmação só é científica se for falseável: se não conseguirmos prová-la, poderemos pelo menos tentar refutá-la. Mas, em 1906, o físico francês Pierre Duhem demonstrou que é impossível refutar uma hipótese única. Segundo ele, cada parte da ciência está presa a uma malha emaranhada de suposições. Essas suposições são acerca de tudo, desde as leis físicas subjacentes até o funcionamento de dispositivos de medição específicos. Se o resultado de seu experimento parecer refutar sua hipótese, sempre será possível explicar os dados ajustando uma de suas suposições e deixando a hipótese intacta.
Tomemos, por exemplo, a geometria do espaço-tempo. O filósofo Immanuel Kant declarou no século 18 que as propriedades do espaço e do tempo não são questões empíricas. Ele acreditava não apenas que a geometria do espaço era necessariamente euclidiana – o que significa que os ângulos internos de um triângulo somam 180 graus –, mas que esse fato deveria ser “a base de qualquer metafísica futura”. De acordo com Kant, esse fato não era testável empiricamente, pois fornecia a própria estrutura dentro da qual entendemos como nossos testes funcionam.
E, ainda assim, em 1919, quando astrônomos mediram o caminho da luz de estrelas distantes que contornavam a influência gravitacional do Sol, eles descobriram que a geometria do espaço, no fim das contas, não era euclidiana: era distorcida pela gravidade, como Albert Einstein tinha previsto pouco antes.
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Mas será isso mesmo? O polímata francês Henri Poincaré propôs um intrigante experimento mental. Imagine que o universo é um disco gigante que está em conformidade com a geometria euclidiana, mas cujas leis físicas incluem o seguinte: o disco é mais quente no meio e mais frio na borda, com a temperatura caindo em proporção ao quadrado da distância do centro. Além disso, esse universo apresenta um índice de refração – uma medida de como os raios de luz se curvam – que é inversamente proporcional à temperatura. Nesse universo, as réguas e os bastões jamais seriam retos (objetos sólidos se expandiriam e encolheriam com o gradiente de temperatura), enquanto o índice de refração faria com que os raios de luz parecessem viajar em curvas, em vez de linhas. Como resultado, qualquer tentativa de medir a geometria do espaço – por exemplo, somando os ângulos de um triângulo – levaria a crer que o espaço não era euclidiano.
Qualquer teste de geometria exige que você pressuponha certas leis da física. E qualquer teste das leis da física exige que você pressuponha a geometria. Sem dúvida, as leis físicas do mundo do disco parecem ad hoc. Mas os axiomas de Euclides também. “Poincaré, na minha opinião, está certo”, disse Einstein em uma palestra no ano de 1921. Ele acrescentou: “Somente a soma da geometria e das leis físicas está sujeita à verificação experimental”. Como disse o lógico americano Willard V. O. Quine, “a unidade de significado empírico” – o que é de fato testável – “é toda a ciência”. A mais simples das observações (que o céu é azul, por exemplo, ou que há uma partícula ali) nos força a questionar tudo o que sabemos sobre o funcionamento do universo.
Mas, na verdade, é pior do que isso. A unidade de significado empírico é uma combinação de ciência e filosofia. O pensador que viu isso mais claramente foi Ferdinand Gonseth, matemático suíço do século 20. Para Gonseth, a ciência e a metafísica estão sempre conversando entre si, com a metafísica fornecendo os fundamentos sobre os quais a ciência opera, a ciência fornecendo evidências que forçam a metafísica a revisar esses fundamentos, e as duas juntas se adaptando e mudando feito um organismo vivo. Como ele disse em um simpósio do qual participou em homenagem a Einstein, “a ciência e a filosofia formam um todo único”.
Com as duas atadas em nó górdio, podemos sentir a tentação de desistir, uma vez que não conseguimos colocar as afirmações científicas à prova sem arrastar as afirmações metafísicas junto com elas. Mas essa história tem um outro lado: tudo isso significa que a metafísica é testável. É por isso que Cavalcanti, que trabalha nos limites do conhecimento quântico, não se refere a si mesmo como físico ou filósofo, mas sim como “metafísico experimental”.
A metafísica experimental
Conversei com Cavalcanti por chamada de vídeo. De cabelos escuros presos em coque, ele tinha um ar pensativo, seu comportamento sério e zeloso contrastando com um cachorrinho de quinze semanas que se contorcia no seu colo. Ele me contou que, como estudante de graduação no Brasil no final da década de 1990, trabalhou com biofísica experimental – “umas coisas bem melecadas”, como ele descreveu, “tirar corações de coelhos e colocá-los debaixo de magnetômetros [supercondutores]”. Embora ele tenha passado para um território mais limpinho (“trabalhando com aceleradores de partículas, estudando colisões atômicas”), sua pesquisa ainda estava longe das questões metafísicas que já ocupavam sua mente. “Me disseram que as questões mais interessantes dos fundamentos da mecânica quântica tinham sido resolvidas por [Niels] Bohr em seus debates com Einstein”, disse ele. Então, ele só media mais uma seção transversal, produzia mais um artigo e fazia tudo de novo no dia seguinte.
Ele acabou trabalhando na Comissão Nacional de Energia Nuclear do Brasil e foi lá que leu os livros dos físicos Roger Penrose e David Deutsch, cada um oferecendo uma história metafísica radicalmente diferente para explicar os fatos da mecânica quântica. Deveríamos abandonar a suposição filosófica de que existe apenas um universo, como sugeriu Deutsch? Ou, como preferiu Penrose, talvez a teoria quântica deixe de ser aplicada em grandes escalas, quando a gravidade entra em ação. “Ali estavam dois físicos brilhantes não apenas discutindo diretamente questões sobre fundamentos, mas discordando profundamente um do outro”, disse Cavalcanti. Penrose, acrescentou ele, “foi além da física e entrou no que é tradicionalmente metafísico, fazendo perguntas sobre a consciência”.
Inspirado, Cavalcanti decidiu fazer um doutorado em fundamentos quânticos e encontrou um lugar na Universidade de Queensland, na Austrália. Sua dissertação começava assim: “Para entender a origem dos conflitos dos fundamentos quânticos, é essencial saber onde e como nossas intuições e modelos clássicos começam a falhar na descrição de um mundo quântico. Este é o tema da metafísica experimental”. Um professor fechou a tese e declarou: “Isto não é física”.
Mas Cavalcanti estava preparado para argumentar que a linha entre a física e a filosofia já havia se apagado, irreparavelmente. Na década de 1960, o físico norte-irlandês John Stewart Bell também havia se deparado com uma cultura da física que não tinha paciência para a filosofia. Os dias em que Einstein e Bohr discutiam sobre a natureza da realidade – e nisso se envolviam profundamente com a filosofia – estavam no passado distante. A praticidade do pós-guerra reinava, e os físicos estavam ansiosos para seguir com os negócios da física, como se o nó górdio tivesse sido cortado, como se fosse possível ignorar a metafísica e ainda assim conseguir fazer ciência. Mas Bell, fazendo um trabalho herético no seu tempo livre, descobriu uma nova possibilidade: embora seja verdade que não é possível testar uma hipótese única isoladamente, é possível pegar várias suposições metafísicas e ver se elas se sustentam ou caem juntas.
Para Bell, essas suposições normalmente são entendidas como localidade (a crença de que as coisas não podem influenciar umas às outras instantaneamente através do espaço) e realismo (que existe uma maneira de as coisas simplesmente serem, independentemente da medição). Seu teorema, publicado em 1964, provou o que é conhecido como desigualdade de Bell: para qualquer teoria que opere sob as premissas de localidade e realismo, há um limite máximo de correlação entre determinados eventos. A mecânica quântica, porém, previa correlações que ultrapassavam esse limite superior.
Da forma como foi escrito, o teorema de Bell não era testável, mas em 1969 o físico e filósofo Abner Shimony percebeu que poderia reescrevê-lo sob uma forma mais adequada para os laboratórios. Juntamente com John Clauser, Michael Horne e Richard Holt, Shimony transformou a desigualdade de Bell na desigualdade CHSH (nomeada com as iniciais de seus autores) e, em 1972, em um porão da Universidade de Berkeley, na Califórnia, Clauser e seu colaborador Stuart Freedman a testaram medindo as correlações entre pares de fótons.
Os resultados demonstraram que o mundo confirmava as previsões da mecânica quântica, apresentando correlações que permaneciam muito mais fortes do que a desigualdade de Bell permitia. Isso significa que a localidade e o realismo não podem ser ambas características da realidade – embora os experimentos não tenham conseguido dizer qual dos dois deveríamos abandonar. “Na minha opinião, o mais fascinante dos teoremas do tipo de Bell é que eles oferecem uma rara oportunidade para um empreendimento que pode ser chamado apropriadamente de ‘metafísica experimental’”, escreveu Shimony em 1980, na declaração que, segundo muitos, cunhou o termo.
O termo, contudo, remonta a um personagem bem improvável. Michele Besso, melhor amigo de Einstein e sua caixa de ressonância, foi a única pessoa a quem Einstein deu crédito por tê-lo ajudado a criar a teoria da relatividade. Mas Besso ajudou menos com a física do que com a filosofia. Einstein sempre foi um realista: acreditava em uma realidade por trás dos panos, independente de nossas observações. Mas Besso lhe apresentou os escritos filosóficos de Ernst Mach, que argumentava que uma teoria deveria se referir apenas a quantidades mensuráveis. Mach, por meio de Besso, encorajou Einstein a desistir de suas noções metafísicas de espaço, tempo e movimento absolutos. O resultado foi a teoria especial da relatividade.
Quando de sua publicação, em 1905, os físicos não sabiam ao certo se a teoria era física ou filosófica. Todas as equações já haviam sido escritas por outros; apenas a metafísica por trás delas era nova. Mas essa metafísica foi suficiente para levar a uma nova ciência, pois a relatividade especial abriu caminho para a relatividade geral, uma nova teoria da gravidade, com previsões novas e testáveis e tudo. Mais tarde, Besso fez amizade com Gonseth. Na Suíça, os dois faziam longas caminhadas nas quais Gonseth argumentava que a física jamais poderia se assentar em bases sólidas, pois os experimentos sempre podem derrubar as suposições mais básicas sobre as quais ela foi construída. Em uma carta que Gonseth publicou na edição de 1948 da revista Dialectica, Besso sugeriu que Gonseth se referia ao seu trabalho como “metafísica experimental”.
A metafísica experimental ganhou uma espécie de sede oficial na década de 1970 com a fundação da Associação Ferdinand Gonseth, em Bienne, na Suíça. “A ciência e a filosofia formam um corpo só”, declarou a ata de fundação, “e tudo o que acontece na ciência, seja em seus métodos ou em seus resultados, pode ressoar na filosofia até mesmo em seus princípios mais fundamentais”. Foi uma declaração radical, igualmente chocante tanto para a ciência quanto para a filosofia. A associação publicava um boletim caseiro chamado Cartas Epistemológicas, uma espécie de “zine” de física, com páginas datilografadas e mimeografadas, salpicadas de equações desenhadas à mão, que era enviado pelo correio para cerca de cem físicos e filósofos que formavam uma nova contracultura – os poucos rebeldes que queriam discutir a metafísica experimental. Shimony era o editor.
O teorema de Bell sempre esteve no centro dessas discussões, pois, se as pesquisas em física deixavam a metafísica passar despercebida, no trabalho de Bell as duas eram verdadeira e explicitamente inseparáveis. O teorema não se referia a nenhuma teoria específica da física. Era o que os físicos chamam de teorema no-go, ou teorema de impossibilidade, uma prova geral que demonstra que qualquer teoria que opere sob as suposições metafísicas de localidade e realismo não pode descrever o mundo em que vivemos. Você quer um mundo que seja apenas de uma determinada maneira, mesmo quando não está sendo medido? Mas você quer também localidade? Impossível. Ou, como disse Shimony nas Cartas Epistemológicas, fazendo um trocadilho com o nome de Bell, quem deseja ter essa visão de mundo “deve se lembrar do sermão de Donne: ‘E, portanto, não procures saber por quem os sinos [bells] dobram; eles dobram por ti’”.
“Bell era tanto físico quanto filósofo da física”, disse Wayne Myrvold, filósofo da física da Western University, no Canadá. “E em alguns de seus melhores artigos, ele basicamente combinava as duas coisas”. Isso incomodava os editores das revistas tradicionais de física e outros guardiões da ciência. “Esse tipo de trabalho definitivamente não era visto como respeitável”, disse Cavalcanti.
Por isso, quando o físico francês Alain Aspect procurou Bell sugerindo um novo experimento que pudesse testar a desigualdade de Bell e, ao mesmo tempo, excluir qualquer influência residual que se propagasse entre os dispositivos de medição usados para detectar as polarizações dos fótons, Bell lhe perguntou se ele tinha um cargo permanente no corpo docente. “A preocupação era que a realização desse experimento fosse a morte para a carreira de um jovem físico”, disse Myrvold.
Corta para 2022, e lá está Aspect, juntamente com Clauser e Anton Zeilinger, indo receber o Prêmio Nobel em Estocolmo. Essas correlações que violam a desigualdade de Bell, no fim das contas, levaram a tecnologias revolucionárias, como criptografia quântica, computação quântica e teletransporte quântico. “Apesar do retorno tecnológico”, disse Myrvold, “o trabalho foi motivado por questões filosóficas”. De acordo com a declaração do Prêmio Nobel, os três físicos ganharam pelo “pioneirismo na ciência da informação quântica”. Para Cavalcanti, eles ganharam pela metafísica experimental.
O teorema de Bell foi só o começo
Na esteira dos experimentos que violavam as desigualdades de tipo Bell, várias visões da realidade continuaram em discussão. Você poderia ficar com o realismo e abrir mão da localidade, aceitando que o que acontece em um canto do universo afeta instantaneamente o que acontece em outro e que, portanto, a relatividade precisa ser modificada. Ou você poderia ficar com a localidade e abrir mão do realismo, aceitando que as coisas no universo não têm características definidas antes de serem medidas – que a natureza, em algum sentido profundo, inventa as coisas na hora.
Mas, mesmo que você abrisse mão de uma realidade pré-medição, ainda poderia se agarrar a uma realidade pós-medição. Ou seja, você poderia pegar todos esses resultados de medição e juntá-los em uma única realidade compartilhada. Normalmente, é isso que queremos dizer com “realidade”. É a própria noção de um mundo objetivo.
Um experimento mental apresentado em 1961 lança dúvidas sobre essa possibilidade. Eugene Wigner, físico ganhador do Prêmio Nobel, propôs um cenário no qual um observador, chamado de “amigo de Wigner”, entra em um laboratório onde há um sistema quântico – digamos, um elétron em sobreposição quântica de dois estados chamados “spin para cima” e “spin para baixo”. O amigo mede o spin do elétron e descobre que ele está para cima. Mas Wigner, do lado de fora, pode usar a mecânica quântica para descrever todo o estado do laboratório, onde, desde sua perspectiva, não se fez nenhuma medição. O estado do amigo e o estado do elétron são meramente correlacionados – emaranhados – enquanto o elétron permanece em uma sobreposição de estados. Em princípio, Wigner pode até fazer uma medição que mostrará os efeitos físicos da sobreposição. Da perspectiva do amigo, o elétron tem algum estado pós-medição, mas isso não parece fazer parte da realidade de Wigner.
Em 2018, essa dúvida incômoda sobre uma realidade compartilhada virou um dilema profundo. Časlav Brukner, físico da Universidade de Viena, percebeu que poderia combinar o amigo de Wigner com um experimento de tipo Bell para provar um novo teorema de impossibilidade. A ideia era ter dois amigos e dois Wigners: cada um dos amigos mede metade de um sistema emaranhado e, em seguida, cada um dos Wigners faz uma das duas medições possíveis no laboratório de seu amigo. Os resultados das medições dos Wigners serão correlacionados, assim como as polarizações dos fótons nos experimentos originais de tipo Bell, com certas suposições metafísicas impondo limites superiores à força dessas correlações.
No fim das contas, a prova de Brukner se baseava em uma suposição extra que enfraquecia a força do teorema resultante, mas inspirou Cavalcanti e seus colegas a criarem sua própria versão. Em 2020, na revista Nature Physics, eles publicaram “A Strong No-Go Theorem on the Wigner’s Friend Paradox” [algo como “Um teorema de impossibilidade forte sobre o paradoxo do amigo de Wigner”, em tradução direta], que provava duas coisas. Primeira, que a metafísica experimental, antes relegada a zines caseiros, agora é digna de revistas científicas de prestígio. Segunda, que a realidade é ainda mais estranha do que o teorema de Bell sugeria.
Seu teorema de impossibilidade mostrou que, se as previsões da mecânica quântica estiverem corretas, as três suposições a seguir não podem ser todas verdadeiras: localidade (nada de ação esquisita à distância), liberdade de escolha (nada de conspiração cósmica que leve você a configurar seus detectores de modo que os resultados pareçam violar a desigualdade de Bell, embora não violem) e o caráter absoluto dos eventos observados (um elétron com spin para cima para o amigo de Wigner é um elétron com spin para cima para todo mundo). Se você quiser interações locais e um cosmo livre de conspirações, terá de desistir da noção de que um resultado de medição para um observador é um resultado de medição para todos.
O mais interessante, disse Cavalcanti, é que seu teorema de impossibilidade “restringe o espaço de possíveis teorias metafísicas de forma mais rigorosa do que o teorema de Bell”.
“É um avanço considerável”, disse Brukner. “É o teorema no-go mais preciso e mais forte”. Ou seja, é a peça mais poderosa da metafísica experimental até agora. “A força desses teoremas de impossibilidade se encontra exatamente no fato de que eles não testam uma teoria específica, mas sim uma visão de mundo. Quando os testamos e demonstramos violações de certas desigualdades, não rejeitamos uma teoria, mas toda uma classe de teorias. É uma coisa muito poderosa. E nos permite entender o que é possível”.
Brukner lamenta que as implicações da metafísica experimental ainda não tenham sido totalmente incorporadas ao restante da física em geral – sobretudo em detrimento da pesquisa sobre a natureza quântica da gravidade. “É realmente lamentável, porque acabamos com imagens erradas de, por exemplo, como é o vácuo ou o que acontece dentro do buraco negro, onde eles são descritos sem qualquer referência aos modos de observação”, disse ele. “Não acho que faremos progressos significativos nesses campos até que realmente trabalhemos muito na teoria da medição”.
Não está claro se a metafísica experimental poderá nos levar à teoria correta da gravidade quântica, mas ela poderia, pelo menos, reduzir o campo de jogo. “Tem uma história, não sei se é verdadeira, mas é boa”, escreveu Cavalcanti em um artigo de 2021, “segundo a qual Michelangelo, quando lhe perguntaram como ele esculpira Davi, disse: ‘Eu só removi tudo o que não era Davi’. Gosto de pensar na paisagem metafísica como o bloco de mármore bruto – com diferentes pontos do bloco correspondendo a diferentes teorias físicas – e na metafísica experimental como um cinzel para esculpir o mármore, eliminando os cantos que não descrevem o mundo de nossa experiência. Pode ser que não consigamos reduzir o bloco a um único ponto, que corresponda à única e verdadeira ‘teoria de tudo’. Mas podemos ter a esperança de que, depois de removermos todos os pedaços que a experiência nos permite, o resto formará um belo todo”.
O que é consciência ou o que é um observador consciente?
Enquanto falava com Cavalcanti, tentei entender qual interpretação da mecânica quântica ele adotava, sentindo quais suposições metafísicas ele esperava manter e quais estava disposto a jogar fora. Ele concordava com a interpretação bohmiana da mecânica quântica, que troca localidade por realismo? Ele era um “bayesianista quântico”, sem necessidade do caráter absoluto dos eventos observados? Ele acreditava nas conspirações cósmicas dos superdeterministas, que atribuem todas as medições correlacionadas no universo atual a um plano-mestre estabelecido no início dos tempos? E quanto a medições gerando realidades paralelas, como na hipótese dos muitos mundos? Cavalcanti ficou firme na cara de pôquer de verdadeiro filósofo – e não respondeu. (O cachorrinho, enquanto isso, estava travando um cabo de guerra contra o tapete). Mas eu peguei uma deixa. Qualquer que seja sua interpretação preferida, Cavalcanti quer que ela toque no mistério da mente: o que é consciência ou o que é um observador consciente? “Ainda acho que este é o mistério mais profundo”, disse ele. “Não acho que nenhuma das interpretações disponíveis chegue de fato à história certa”.
Em seu artigo de 2020 na Nature Physics, Cavalcanti e colegas relataram os resultados do que chamaram de “versão de prova de princípio” de seu experimento Bell-Amigo-de-Wigner, que demonstrou uma clara violação de desigualdades derivadas das suposições conjuntas de localidade, liberdade de escolha e caráter absoluto dos eventos observados. Mas o experimento é inerentemente complicado, porque algo – ou alguém – tem de fazer o papel de observador. Na versão de prova de princípio, os “amigos” de Wigner eram interpretados por caminhos de fótons, enquanto os detectores de fótons faziam o papel dos Wigners. Mas é difícil dizer se algo tão simples quanto um caminho de fótons pode fazer as vezes de observador.
“Se você acha que qualquer sistema físico pode ser considerado um observador, então o experimento já foi feito”, disse Cavalcanti. “Mas a maioria dos físicos vai pensar, não, eu não caio nessa. Então, quais são os próximos passos? Até onde podemos ir?” Uma molécula é um observador? Uma ameba? Wigner poderia ser amigo de um figo? Ou de uma árvore?
Se o amigo tem que ser humano, é difícil exagerar como seria difícil medir um deles em uma sobreposição, que é exatamente o que os Wigners do experimento precisam fazer. Já é difícil manter um único átomo em sobreposição. Sustentar os estados sobrepostos de um átomo significa isolá-lo de praticamente todas as interações – até mesmo interações com o ar – o que significa armazená-lo a apenas um fio de cabelo acima do zero absoluto. O ser humano adulto médio, além de precisar de ar, é feito de cerca de 30 trilhões de células, cada uma com cerca de 100 trilhões de átomos. A tecnologia, as habilidades motoras finas e a ética questionável de que um Wigner precisaria para fazer sua medição seriam demais para a imaginação de qualquer físico – ou qualquer conselho institucional de revisão por pares. “Nem sempre se diz que esse experimento [hipotético] é um ato violento”, disse Myrvold. “Ele basicamente envolve destruir a pessoa e depois reanimá-la”. Boa sorte para conseguir o financiamento.
Brukner, por exemplo, se pergunta se a medição não é apenas difícil, mas impossível. “Suspeito que, se colocarmos tudo no papel, veremos que os recursos necessários para Wigner fazer essa medição vão muito além do que está disponível no universo”, disse ele. “Talvez em alguma teoria mais fundamental, essas limitações venham a fazer parte da teoria, e essa questão vai ficar sem sentido”. Isso seria uma reviravolta e tanto para a metafísica experimental. Talvez nossos insights mais profundos sobre a natureza da realidade venham quando percebermos o que não é testável.
Mas Cavalcanti não perde a esperança. Talvez nunca consigamos executar o experimento com um ser humano, diz ele, mas por que não um algoritmo de inteligência artificial? Em seu trabalho mais recente, junto com o físico Howard Wiseman e a matemática Eleanor Rieffel, ele argumenta que o amigo poderia ser um algoritmo de IA em execução em um imenso computador quântico, realizando um experimento simulado em um laboratório simulado. “Em algum momento”, argumenta Cavalcanti, “teremos uma inteligência artificial que será essencialmente indistinguível dos humanos no que diz respeito às habilidades cognitivas” e seremos capazes de testar sua desigualdade de uma vez por todas.
Mas essa suposição tem suas controvérsias. Alguns filósofos da mente acreditam na possibilidade de uma IA forte, mas certamente não todos. Pensadores do que é conhecido como cognição corporificada, por exemplo, argumentam contra a noção de uma mente sem corpo. Já a abordagem enativa à cognição só admite mentes em criaturas vivas.
Tudo isso deixa a física em uma posição estranha. Só poderemos saber se a natureza viola a desigualdade de Cavalcanti – ou seja, só poderemos saber se a objetividade em si está no bloco de mármore bruto da metafísica – quando definirmos o que pode ser um observador. E descobrir isso envolve física, ciência cognitiva e filosofia. O espaço radical da metafísica experimental se expande para entrelaçar todas as três. Parafraseando Gonseth, talvez eles formem um todo único. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
História original republicada com permissão da Quanta Magazine, uma publicação editorialmente independente apoiada pela Simons Foundation. Leia o conteúdo original em ‘Metaphysical Experiments’ Probe Our Hidden Assumptions About Reality
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