Movimentos oculares ajudam a vencer trauma

Técnica EMDR, que envolve reprocessar memórias e dessensibilização, ganha força

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Por Dani Blum

THE NEW YORK TIMES- O trauma sobrecarrega a mente. O cérebro tenta se defender dos fragmentos do desastre: a explosão de vidro estilhaçado quando o carro colide com outro, o cheiro de fumaça. Pessoas com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) às vezes restringem suas vidas, evitando ruas, cheiros ou músicas que as fazem se lembrar do que viveram. Mas as memórias se impõem –na forma de pesadelos, flashbacks e pensamentos intrusivos. Desde que o TEPT foi incluído no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, em 1980, os médicos identificaram um punhado de terapias que ajudam as pessoas a lidar com memórias traumáticas. E, na última década, um tratamento aparentemente não convencional ganhou muita atenção.

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A dessensibilização e reprocessamento por meio de movimentos oculares, terapia mais conhecida pela sigla em inglês EMDR, pode parecer uma prática bizarra. Ela envolve persuadir as pessoas a processar memórias traumáticas enquanto interagem simultaneamente com imagens, sons ou sensações que ativam os dois lados do cérebro. Solicita-se aos pacientes que movam os olhos para frente e para trás, seguindo o dedo de um terapeuta, ou olhem para rajadas de luz em lados alternados de uma tela. A ideia é ancorar o cérebro no momento presente enquanto o paciente relembra o passado. Nos últimos anos, a EMDR atraiu mais atenção por causa, pelo menos em parte, ao aumento da demanda por tratamento de trauma durante a pandemia e às celebridades que compartilharam suas experiências.

O príncipe Harry filmou uma sessão de EMDR para uma série de documentários com Oprah. Sandra Bullock disse que recorreu à EMDR depois que um perseguidor invadiu sua casa em 2014; Jameela Jamil, atriz de The Good Place, escreveu um post no Instagram em 2019: “A EMDR salvou minha vida”. Os pacientes que procuram a EMDR podem se inspirar em outra fonte: The Body Keeps the Score, livro seminal sobre trauma que permaneceu na lista de best-sellers do New York Times por mais de duzentas semanas. Bessel van der Kolk, o autor do livro, apresenta o tratamento como uma das formas mais eficazes de combater os sintomas de TEPT. “Não é mais um tratamento inovador”, disse ele. “É algo que está muito bem estabelecido.”

EMDR envolve persuadir os pacientes a processar memórias traumáticas enquanto interage com imagens, sons ou sensações, como mover os olhos para frente e para trás, que ativam ambos os lados do cérebro. (Sophie Park/The New York Times) Foto: SOPHIE PARK

1. O que é EMDR?

A psicóloga Francine Shapiro desenvolveu a EMDR em 1987, quando lutava com suas próprias memórias perturbadoras –primeiro, experimentando em si mesma, movendo os olhos para frente e para trás enquanto caminhava por um parque e, em seguida, expandindo gradualmente o tratamento para outras pessoas. Os terapeutas realizam a EMDR em oito fases que normalmente se desdobram em seis a 12 sessões, embora esse número varie de pessoa para pessoa. Cada sessão tende a durar entre 60 e 90 minutos. Primeiro, o terapeuta discute os desafios do paciente, coletando informações sobre sua história; em seguida, propõe um plano de tratamento, disse Deborah Korn, médica e coautora de Every Memory Deserves Respect.

O paciente precisa “fazer o caminho de volta” de seus sintomas, disse ela, explorando explosões emocionais ou ataques de pânico para isolar os gatilhos. O objetivo é identificar uma memória traumática que o paciente possa trabalhar nas fases posteriores da EMDR.”A maioria das pessoas não aparece dizendo ‘Quero trabalhar com minhas memórias traumáticas dos 5 aos 11 anos’”, disse Korn. “Elas dizem: ‘Estou me sentindo muito mal’”.

A partir daí, paciente e médico elaboram estratégias de enfrentamento, como exercícios respiratórios ou meditação, para ajudar a combater a dissociação, as quais o paciente pode usar se ficar angustiado durante ou entre as sessões. Uma vez estabelecidas essas estratégias, geralmente após uma ou duas sessões, o terapeuta instrui o paciente a recordar o aspecto mais difícil do evento traumático. Pode ser uma imagem, som ou cheiro que se intrometa em seus pensamentos com mais frequência; para alguns pacientes, a memória mais vívida de um trauma ocorreu pouco antes de o evento acontecer, disse Sanne Houben, pesquisadora da Universidade de Maastricht que estuda EMDR. Os pacientes se concentram nas sensações e emoções que experimentam quando pensam nesse aspecto, ao mesmo tempo em que se envolvem em atividades como mover os olhos, bater no corpo ou ouvir um bipe fraco que se alterna entre os ouvidos. Cada conjunto dessas estimulações bilaterais normalmente dura entre 30 e 60 segundos.

Francine Shapiro, que desenvolveu uma terapia popular, embora controversa, para trauma chamada dessensibilização e reprocessamento do movimento dos olhos, morreu em 16 de junho de 2019, Foto: VIA EMDR INSTITUTE

O terapeuta fica perguntando ao paciente o que ele está percebendo ou sentindo, incentivando-o a avaliar sua memória de uma perspectiva presente. “Se você disser: ‘É tudo culpa minha’, o terapeuta pode perguntar: quantos anos você tinha? Você realmente acha que poderia se proteger quando criança?”, disse Vaile Wright, diretor sênior de inovação em saúde da Associação Americana de Psicologia. “Não é só sentar lá e pensar na memória”.

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2. Como funciona a técnica EMDR?

Forçar o paciente a revisitar o passado não é uma característica apenas da EMDR; a maioria das terapias para TEPT, incluindo exposição prolongada e terapia de processamento cognitivo, leva os pacientes a “ir ativamente em direção ao trauma”, disse Shaili Jain, especialista em TEPT da Universidade Stanford. Revisitar o trauma pode ativar a resposta do corpo ao estresse – os níveis de cortisol aumentam e a frequência cardíaca dispara. Mas, com o tempo, o processo pode gradualmente dessensibilizar o paciente em relação às suas memórias, habituando seu corpo ao estresse e à ansiedade que experimenta quando confrontado com algo que relembre o trauma.” Essa resposta de luta ou fuga é reduzida vários níveis, então você retoma as rédeas da sua vida”, disse Jain. “Em vez de ficar sofrendo com os gatilhos.”

Na EMDR, o componente adicional de estimulação bilateral teoricamente ancora o paciente no momento presente enquanto ele está envolvido com o trauma. “Usamos a frase: ‘um pé no presente e um pé no passado’”, disse Marianne Silva, assistente social e clínica de EMDR em um hospital para veteranos de guerra. A estimulação bilateral precisa ser convincente o bastante para distrair os pacientes, mas não avassaladora a ponto de eles se concentrarem totalmente nela. Tabelas de multiplicação, por exemplo, exigiriam muito esforço, disse Richard McNally, professor de Psicologia da Universidade Harvard. Nossos cérebros não têm capacidade de se concentrar completamente na estimulação bilateral e na memória traumática ao mesmo tempo, disse Houben.

A teoria por trás da EMDR é que as memórias ficam menos vívidas e emocionais quando o paciente consegue não se concentrar completamente nelas.”No final da sessão de terapia, você coloca a memória de volta na prateleira”, afirmou McNally. “Ela fica em uma forma degradada, menos evocativa em termos emocionais”.

Prince Harry foi um dos que usou a técnica Justin Setterfield/Pool via REUTERS Foto: POOL

3. A EMDR é realmente eficaz?

Hoje, os médicos geralmente consideram a EMDR um tratamento eficaz para o trauma. A Organização Mundial da Saúde e a Associação Americana de Psicologia a recomendaram para pessoas com TEPT e emitiram diretrizes para administrar o tratamento. Na Inglaterra, o Instituto Nacional de Excelência em Saúde e Cuidados, autoridade no campo psicológico, lista a EMDR como uma ferramenta para adultos que sofrem com traumas e crianças que não responderam à terapia cognitivo-comportamental focada no trauma. Mas os cientistas estão debatendo se a EMDR é mais eficaz do que outros métodos de tratamento de trauma.

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Pim Cuijpers, professor de Psicologia Clínica da Vrije Universiteit Amsterdam, analisou quase 80 estudos sobre EMDR e descobriu que, embora a pesquisa apontasse para os efeitos positivos do tratamento, “a qualidade da pesquisa é muito ruim”, disse ele. Muitos tratamentos psicológicos carecem de estudos rigorosos, disse ele, mas as evidências para a EMDR são particularmente frágeis, com amostras pequenas e potencial viés por parte dos médicos que conduzem a pesquisa. Embora a EMDR provavelmente seja eficaz, disse Cuijpers, ele alertou contra endossar cegamente as evidências por trás do tratamento. E há pouquíssimos estudos que mostram que a EMDR funciona a longo prazo, disse Henry Otgaar, pesquisador e professor de Psicologia Forense da Universidade de Maastricht, nos Países Baixos. Otgaar, Houben e outros pesquisadores estão investigando se a EMDR aumenta a suscetibilidade dos pacientes a memórias falsas.

Embora criar memórias falsas seja um risco em muitas terapias, Houben disse que “é muito cedo para dizer se isso é inerente à EMDR”. Quando a EMDR começou a ficar mais amplamente divulgada no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, McNally, então pesquisador de traumas, foi um dos críticos mais sinceros contra o tratamento – escrevendo que a EMDR era “apenas uma das muitas modas terapêuticas que sujam o panorama da psicologia hoje”, em uma edição do Journal of Anxiety Disorders. Ele reconheceu que a EMDR pode dessensibilizar as pessoas às suas memórias, mas não achou que houvesse evidências convincentes de que a característica mais distinta da terapia – os movimentos oculares – tivesse algum benefício adicional. Hoje, a questão permanece em debate: processar o trauma com um terapeuta levaria a resultados semelhantes? Jain diz que é uma “pergunta de 1 milhão de dólares”.

A Organização Mundial da Saúde e a Associação Americana de Psicologia a recomendaram para pessoas com TEPT e emitiram diretrizes para administrar o tratamento. (Sophie Park/The New York Times) Foto: SOPHIE PARK

Ainda assim, há pacientes e médicos que defendem o tratamento e juram que existem “dados sólidos” suficientes para apoiá-lo, disse Jain. Os pacientes relatam menos sintomas de TEPT após as sessões, disse Wright, com menos flashbacks e pensamentos intrusivos.

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4. Quem a EMDR pode ajudar?

”Qualquer pessoa que tenha sofrido um trauma” pode se beneficiar da EMDR, disse Trisha Miller, psicoterapeuta da Cleveland Clinic. Pessoas com outras condições de saúde mental além de TEPT, como depressão, distúrbios alimentares, fobias e vícios também podem se beneficiar, acrescentou ela, embora ainda não haja pesquisas robustas confirmando que o tratamento é eficaz para essas condições. As pessoas que procuram terapeutas de EMDR devem tomar o cuidado de encontrar um especialista certificado, enfatizou Miller.

A Associação Internacional de EMDR, que administra a certificação e o treinamento para a terapia, mantém um diretório de profissionais que foram formados e certificados pela organização.” Do ponto de vista clínico, eu fico: ‘o importante é que funcione’”, afirmou Jain. “Se a EMDR funciona para você, então faça”.

TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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