Por que fósseis de ancestrais humanos viajaram para fora da Terra no bolso de um turista espacial?

Ossos foram lançados no terceiro voo espacial comercial da Virgin Galactic, no bolso de um dos passageiros; paleontólogos criticaram

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Foto do author Roberta Jansen
Atualização:

Num questionável tributo à exploração do Cosmos pela Humanidade, dois valiosos fósseis de antigos hominídeos foram lançados ao espaço pela primeira vez a bordo do terceiro voo espacial comercial da Virgin Galactic, no último dia 8 de setembro. Embora os ossos tenham voltado à Terra em segurança pouco mais de uma hora depois do lançamento, especialistas criticaram a jornada, considerada antiética e sem nenhum propósito científico.

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Um osso de clavícula de dois milhões de anos e um outro de um dedão de 250 mil anos, devidamente acomodados em um contêiner, foram ao espaço em um dos bolsos do empresário sul-africano Timothy Nash, um dos três passageiros pagantes do voo suborbital, que alcançou uma altura de aproximadamente 88 quilômetros acima da superfície terrestre.

“Precisei de um tempo para processar a magnitude de estar entre os primeiros civis a irem ao espaço e, ainda por cima, carregando esses fósseis preciosos”, afirmou Nash em um comunicado divulgado à imprensa. “Estou honrado de representar a África do Sul e toda a Humanidade, ao levar ao espaço essas preciosas amostras de ancestrais humanos, na primeira jornada de nossos mais antigos parentes ao espaço.”

“Precisei de um tempo para processar a magnitude de estar entre os primeiros civis a irem ao espaço e, ainda por cima, carregando esses fósseis preciosos”, afirmou Nash Foto: Virgin Galactic

Um dos fósseis lançados ao espaço, o da clavícula, foi encontrado na região chamada de Berço da Humanidade, perto de Johanesburgo, na África do Sul. Pertencia a uma criança da espécie de hominídeo Australopithecus sediba. Esse ancestral humano, segundo pesquisadores, já andava sobre os dois pés, mas ainda apresentava comportamentos similares aos de macacos, como subir em árvores.

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O outro osso lançado ao espaço, de um dedão, pertence à espécie Homo naledi, descrita apenas em 2013, como parte de uma das maiores escavações realizadas, que desenterrou nada menos que 1.550 espécimes em um único local, também na África do Sul. Membros dessa espécie tinham ombros parecidos com os dos atuais macacos, mas seus dentes, braços, pés e cérebro eram muito similares aos dos humanos. Eles já tinham a capacidade de desenhar e fazer ferramentas.

Levar os fósseis ao espaço foi uma forma de a humanidade apresentar seu apreço a seus ancestrais e mais antigos parentes, nas palavras do paleoantropólogo Lee Berger, da Universidade de Witwatersrand, em Johanesburgo, envolvido diretamente na descoberta de ambos os fósseis.

“Se eles não tivessem desenvolvido tecnologias como a das ferramentas e não tivessem contribuído para a evolução da mente do homem contemporâneo, conquistas extraordinárias, como os voos espaciais, jamais teriam acontecido”, sustentou Berger no mesmo comunicado.

“Esses fósseis representam indivíduos que viveram e morreram há centenas de milhares de anos, indivíduos que, provavelmente, em algum momento olharam para as estrelas e deixaram a mente vagar, exatamente como fazemos”, afirmou Matthew Berger, filho de Lee Berger, ao entregar os fósseis para Nash, durante uma breve cerimônia realizada antes do lançamento.

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“Enquanto estavam vivos, nunca puderam sonhar em embarcar nessa incrível jornada como embaixadores de todos os ancestrais da Humanidade.”

Apesar da grandiloquência dos discursos e comunicados feitos para justificar o envio de fósseis preciosos e frágeis numa viagem espacial, a jornada provocou grande revolta entre arqueólogos, paleoantropólogos e cientistas em geral. Para eles, foi uma jogada publicitária antiética, que colocou em risco os valiosos fósseis de hominídeos, levantando ainda questões sobre a proteção do patrimônio histórico da África do Sul, uma vez que o governo autorizou a viagem.

“Tratar fosseis de ancestrais de uma forma tão insensível e antiética – lança-los ao espaço só porque você consegue fazer isso; não há mérito científico nisso”, reclamou o geólogo Robyn Pickering, da Universidade de Cape Town, na África do Sul, em entrevista à revista “Nature”.

Pickering, que participou da datação do A. sediba disse ainda que as justificativas apresentadas para levar os fósseis ao espaço não se sobrepõem aos riscos potenciais de perder ou danificar as amostras. O osso da clavícula, do A. sediba, é especialmente valioso, segundo o geólogo, porque é o chamado exemplar de referência, usado para descrever a espécie.

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A Sociedade Europeia para o Estudo da Evolução Humana divulgou um comunicado no último dia 13, condenando a missão: “Não vemos nenhum mérito científico nesse projeto e questionamos a ética da missão ao expor esses materiais únicos a um potencial risco de danos. Pedimos o gerenciamento responsável e a devida proteção dessas fontes científicas insubstituíveis”.

Arqueólogo da Universidade de Cape Town, na África do Sul, Yonatan Sahle comparou o envio de fósseis do continente ao espaço com práticas coloniais e neocoloniais em que pesquisadores europeus e americanos submetiam instituições africanas a suas vontades.

“Como um pesquisador africano, baseado em uma instituição africana, considero que esse gesto é, basicamente, uma perpetuação de aspectos muito condenáveis da pesquisa paleoantropológica do passado”, disse, em entrevista à “Nature”.

“Alguém já imaginou se a gente mandasse um pedaço da Luzia, um dos mais antigos registros de ocupação da América do Sul, para o espaço?”, questionou o paleontólogo Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional, no Rio, se referindo ao fóssil de Luzia, de 13 mil anos, o mais antigo de um hominídeo já encontrado na América do Sul.

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“Se eles têm tantos fósseis de hominídeos assim, em vez de enviar ao espaço, que mandem para o Museu Nacional, que está trabalhando para a recomposição de seu acervo.”

“Nada é ganho com essa - bom, nem sei como definir - ação sem o menor propósito científico. Enfim, não achei correto nem produtivo. Talvez seja a crescente necessidade de ‘causar’, um mal que tem se intensificado com o mal uso das mídias sociais”, concluiu o paleontólogo.

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