
QUANTA MAGAZINE – Mais de 150 anos atrás, o economista e filósofo William Stanley Jevons descobriu algo curioso sobre o número 4. Refletindo sobre como a mente concebe os números, ele jogou um punhado de feijão preto numa caixa de papelão. Aí, após uma rápida olhada, ele adivinhou quantos eram, antes de contá-los para registrar o valor de fato. Depois de mais de mil tentativas, ele viu um padrão claro. Quando havia 4 feijões ou menos na caixa, ele sempre adivinhava o número certo. Mas, para mais de 5 grãos, suas estimativas rápidas muitas vezes se provavam incorretas.
A descrição de Jevons sobre seu experimento, publicada na Nature em 1871, estabeleceu a “base de como pensamos os números”, disse Steven Piantadosi, professor de psicologia e neurociência na Universidade da Califórnia, em Berkeley. O estudo gerou um debate contínuo e duradouro sobre por que parece haver um limite no número de itens que conseguimos avaliar com precisão que estão presentes em determinado conjunto.
Agora, um novo estudo publicado na revista Nature Human Behavior chegou mais perto de uma resposta ao fazer uma análise sem precedentes sobre a forma como as células cerebrais humanas disparam quando apresentadas a determinadas quantidades. Suas descobertas sugerem que o cérebro usa uma combinação de dois mecanismos para avaliar quantos objetos está vendo. O primeiro avalia quantidades. O segundo aumenta a precisão dessas estimativas – mas só para números pequenos.
É “muito empolgante” que as descobertas conectem ideias há muito debatidas às suas bases neurais, disse Piantadosi, que não participou do estudo. “Não é sempre que conseguimos identificar bases biológicas muito plausíveis para alguma coisa na cognição”.
Embora o novo estudo não encerre o debate, as descobertas começam a desvendar a base biológica de como o cérebro avalia quantidades, o que poderá embasar questões maiores sobre memória, atenção e até matemática.
Cada neurônio tem seu número favorito
A capacidade de avaliar instantaneamente o número de itens em certo conjunto não tem nada a ver com contagem. Os bebês têm esse sentido numérico antes mesmo de aprenderem a linguagem. E isso não se limita aos humanos: macacos, abelhas, peixes, corvos e outros animais têm a mesma capacidade.
O macaco precisa ser capaz de avaliar rapidamente o número de frutas na árvore e também com quantos outros macacos está competindo por essas frutas. O leão, quando confrontado por outros leões, tem de decidir se vai lutar ou fugir. As abelhas precisam saber qual área tem mais flores para explorar. O peixe tem mais chances de escapar de um predador quando se junta a um cardume. “Quanto maior o cardume, mais segurança para o peixinho”, disse Brian Butterworth, neurocientista cognitivo da University College London que não participou do novo trabalho.
Esse sentido numérico inato é, portanto, fundamental para a sobrevivência, pois aumenta as chances de um animal encontrar comida, evitar predadores e, em última análise, procriar. “Conseguir diferenciar quantidades numéricas contribui para a sobrevivência do animal”, disse Andreas Nieder, catedrático de fisiologia animal da Universidade de Tübingen, na Alemanha, que é um dos líderes do novo estudo. O fato de essa capacidade ser encontrada em diversos animais, desde insetos até humanos, sugere que surgiu há muito tempo, e sua base neural tem interessado cientistas cognitivos há décadas.

Em 2002, quando Nieder trabalhava como pós-doutorando com o neurocientista Earl Miller no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), eles publicaram uma das primeiras evidências de que os números estão ligados a neurônios específicos. Em um experimento comportamental com macacos, descobriram que esses neurônios, localizados no córtex pré-frontal, onde ocorre o processamento de nível superior, têm números preferidos – números favoritos que, quando percebidos, fazem as células se acenderem nos exames cerebrais.
Por exemplo, alguns neurônios estão sintonizados com o número 3. Quando são apresentados a três objetos, eles disparam mais. Outros neurônios estão sintonizados com o número 5 e disparam quando apresentados a cinco objetos, e assim por diante. Esses neurônios não estão exclusivamente comprometidos com seus favoritos: eles também disparam para números adjacentes. (Portanto, o neurônio sintonizado no 5 também dispara para quatro e seis objetos). Mas não fazem isso com tanta frequência e, à medida que o número apresentado se afasta do número preferido, a taxa de disparo dos neurônios diminui.
Nieder ficou entusiasmado com as questões mais profundas que o trabalho apresentava sobre o desenvolvimento da habilidade matemática. Os números levam à contagem e, em seguida, às representações numéricas simbólicas, como algarismos arábicos que indicam quantidades. Esses números simbólicos fundamentam a aritmética e a matemática. “Saber como os números são representados [no cérebro] é estabelecer a base para tudo o que vem depois”, disse Nieder.
Ele tentou aprender o máximo que pôde sobre neurônios numéricos. Em 2012, sua equipe descobriu que os neurônios respondem aos seus números preferidos quando avaliam um conjunto de sons ou itens visuais. Depois, em 2015, eles mostraram que os corvos também têm neurônios numéricos. Numa demonstração de “comportamento incrível dos corvos”, disse Nieder, os pássaros conseguiam bicar corretamente o número de pontos ou algarismos arábicos que lhes eram apresentados.
No entanto, ninguém tinha identificado neurônios numéricos em humanos – porque estudar o cérebro humano é notoriamente difícil: os cientistas normalmente não conseguem estudar sua atividade de forma ética em experimentos com pessoas vivas. As ferramentas de imagem cerebral não têm a resolução necessária para distinguir neurônios específicos, e a curiosidade científica por si só não justifica a implantação de eletrodos invasivos no cérebro.
Para examinar um cérebro vivo, Nieder precisava encontrar pacientes que já tivessem implantes de eletrodos e que consentissem em fazer parte de sua pesquisa. Em 2015, ele contatou Florian Mormann – chefe do grupo de neurofisiologia cognitiva e clínica da Universidade de Bonn, que é um dos poucos médicos na Alemanha que faz registros de células específicas em pacientes humanos – para ver se ele e seus pacientes gostariam de se juntar à busca de Nieder por neurônios numéricos em humanos. Mormann disse sim, e suas equipes começaram a trabalhar examinando a atividade cerebral de pacientes com epilepsia, que já tinham eletrodos para melhorar os cuidados médicos.

Nove pacientes fizeram cálculos simples mentalmente enquanto os pesquisadores registravam sua atividade cerebral. Nieder e Mormann viram neurônios disparando para seus números preferidos – a primeira vez que neurônios numéricos foram identificados no cérebro humano. Eles publicaram suas descobertas na Neuron em 2018.
É claro que os neurocientistas são instigados a compreender a própria mente, disse Nieder, e por isso “encontrar tais neurônios no cérebro humano é muito gratificante”.
Um limiar numérico
Para continuar sua busca, Nieder e Mormann lançaram um novo estudo para descobrir como os neurônios representam números pares e ímpares. Os pesquisadores recrutaram 17 pacientes com epilepsia e lhes mostraram flashes de pontos em telas de computador, variando de um a nove pontos. Os participantes indicavam se viam um número par ou ímpar enquanto os eletrodos registravam sua atividade cerebral.
Nos meses seguintes, enquanto Esther Kutter, orientanda de pós-graduação de Nieder, analisava os dados resultantes, ela viu surgir um padrão claro – bem em torno do número 4.
Os dados, que abrangiam 801 registros de disparos de neurônios específicos, mostraram dois padrões neurais distintos: um para números pequenos e outro para números grandes. Acima do número 4, o disparo dos neurônios para o número preferido ficava progressivamente menos preciso e eles disparavam erroneamente para números próximos ao preferido. Mas, para 4 e abaixo, os neurônios disparavam com precisão – com a mesma mínima quantidade de erro quer disparassem para um, dois, três ou quatro objetos. Quase não havia falha de disparo em resposta a outros números.
Isso surpreendeu Nieder. Ele nunca tinha visto esse limiar em seus estudos com animais – experimentos que só abarcavam números até 5. Ele não tinha a intenção de pesquisar a observação de Jevons, nem esperava ver uma fronteira neural confirmar o que os estudos comportamentais haviam descoberto. Até então, ele estava convencido de que o cérebro tinha apenas um mecanismo para avaliar números – um continuum que ficava mais confuso à medida que os números subiam.

Os novos dados mudaram tudo. “Esse limiar surgiu de maneiras diferentes”, disse Nieder. Os padrões neurais sugeriam que existe um segundo mecanismo que impede que neurônios de números menores disparem para números errados.
Piantadosi e Serge Dumoulin, diretor do Centro Spinoza de Neuroimagem em Amsterdã, já haviam publicado artigos defendendo a ideia de que a interpretação neuronal dos números é gerenciada por apenas um mecanismo. Mas eles ficaram impressionados com os novos dados de Nieder e Mormann, que mostram que, na verdade, existem dois mecanismos distintos.
É “uma validação concreta de que números grandes e pequenos têm assinaturas neurais diferentes”, disse Piantadosi. Mas ele advertiu que duas assinaturas podem surgir de um mesmo processo. Se esse processo deve ser descrito como um mecanismo ou dois, isto ainda está em debate.
“É simplesmente lindo”, disse Dumoulin. “Esse tipo de dado não estava disponível, certamente não em humanos”.
Mas resta mais uma grande incerteza. Os pesquisadores não estudaram os córtices pré-frontais ou parietais, onde a maioria dos neurônios numéricos está localizada nos macacos. Em vez disso, devido ao local onde os eletrodos dos pacientes estavam inseridos, o estudo se concentrou no lobo temporal medial, que tem a ver com a memória. Não é o primeiro lugar do cérebro humano que você investigaria para entender os números, disse Nieder. “Mas o lobo temporal medial também não é o pior lugar para procurar esses neurônios”.
Isso ocorre porque o lobo temporal medial está ligado ao sentido numérico. Fica ativo quando as crianças aprendem cálculos e tabuada e está intimamente ligado a regiões onde acreditamos que os neurônios numéricos se encontram, disse Nieder.
Não está claro por que os neurônios numéricos estão presentes nessa região, disse Butterworth. “As coisas que pensávamos serem específicas do lobo parietal parecem se refletir também em partes do lobo temporal medial”.
Uma possibilidade é que, no fim das contas, não se tratem de neurônios numéricos. Pedro Pinheiro-Chagas, professor assistente de neurologia na Universidade da Califórnia, em São Francisco, acha que podem ser neurônios conceituais, localizados no lobo temporal medial, cada um deles ligado a conceitos específicos. Por exemplo, um estudo famoso encontrou um neurônio conceitual que respondia direta e especificamente a imagens da atriz Jennifer Aniston. “Talvez eles não estejam encontrando os mecanismos do sentido numérico. Talvez estejam encontrando células conceituais que também se aplicam a números”, disse Pinheiro-Chagas. “Assim como existe o conceito de ‘Jennifer Aniston’, também pode existir o conceito de ‘três’”.
O nível de análise é “realmente notável”, disse Marinella Cappelletti, neurocientista cognitiva da Universidade Goldsmiths de Londres. Os pesquisadores apresentam “evidências convincentes” de mecanismos duplos no lobo temporal medial. Ela acha que, no entanto, seria valioso observar se esses mecanismos operam também em outras regiões do cérebro.
“Vejo essas descobertas como se estivéssemos olhando por uma janela”, disse Cappelletti. “Seria bom abrir um pouco mais essa janela, ver se ela pode nos contar mais sobre o resto do cérebro”.
Tem alguma coisa com o número 4
As novas descobertas têm paralelos claros com as limitações da memória de trabalho. As pessoas conseguem manter apenas um certo número de objetos na memória de trabalho, ao mesmo tempo. Experimentos mostram que esse número também é 4.
É “difícil ignorar” a coincidência entre o limiar do sentido numérico e o da memória de trabalho, disse Cappelletti.
É possível que os mecanismos estejam relacionados. Em estudos anteriores sobre o sentido numérico, quando um participante parava de prestar atenção, perdia a capacidade de avaliar com precisão o verdadeiro valor dos números menores que 4. Isso sugere que o sistema de números pequenos, que suprime falhas de disparo com números pequenos adjacentes, pode estar intimamente ligado à atenção.
Nieder agora levanta a hipótese de que o sistema de números pequenos só é ativado quando você presta atenção ao que está à sua frente. Ele espera testar essa ideia em macacos, além de procurar um limiar neural em 4 que seus experimentos ainda não tenham captado.
A nova pesquisa “parece ser o início de um novo salto” no nosso entendimento da percepção dos números, disse Pinheiro-Chagas, o que poderá ter aplicações úteis. Ele espera que o estudo sirva de tema para debates na educação matemática e até mesmo na inteligência artificial, que tem dificuldade para perceber números. Grandes modelos de linguagem são “muito ruins na hora de contar. São muito ruins em entender quantidades”, disse ele.
Caracterizar melhor os neurônios numéricos também pode nos ajudar a entender quem somos. Depois do sistema de linguagem, a representação numérica é o segundo maior sistema de símbolos dos humanos. As pessoas usam números com frequência e de diversas maneiras, e nós e nossos ancestrais usamos a matemática para descrever o mundo há milênios. Nesse sentido, a matemática é uma parte fundamental do ser humano.
E, como esse estudo começa a mostrar, essa capacidade de cálculo pode resultar de uma rede bem afinada de neurônios no cérebro. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
História original republicada com permissão da Quanta Magazine, uma publicação editorialmente independente apoiada pela Simons Foundation. Leia o conteúdo original em Why the Human Brain Perceives Small Numbers Better