Uma ilha paradisíaca, que já foi reduto exclusivo de um político brasileiro, no litoral norte de São Paulo, será transformada no primeiro museu-ilha do país. A Ilha das Cabras, no arquipélago de Ilhabela, região de mar azul e lindas praias que já atraem turistas de todo o Brasil, vai abrigar o Museu de História, Antropologia e Cultura do Litoral Norte. A instalação começa no 1º semestre de 2024 e a previsão é de que a abertura para visitação seja no início de 2026.
O projeto se tornou possível depois que a ilha, indevidamente transformada em propriedade particular, foi retomada pelo poder público, após mais de 30 anos de demanda judicial. Desde 1989, o ex-senador Gilberto Miranda ocupou a ilhota com exclusividade, construindo sua mansão de veraneio no local.
Condenado por danos ambientais causados ao ecossistema local, Miranda recorreu a todas as instâncias da Justiça e acabou fazendo um acordo, em 2022, para a devolução da ilha e pagamento de R$ 14 milhões referentes às multas e indenizações.
Uma parceria entre a Unesco, braço da Organização das Nações Unidas (ONU) para educação, ciência e cultura, a Fundação Florestal, órgão ambiental do governo paulista, e o Ministério Público Federal (MPF) vai garantir a formatação da Ilha-Museu. Para isso será utilizada parte das benfeitorias construídas pelo ex-parlamentar na Ilha das Cabras para proveito próprio e de convidados, como piscina, heliporto, píer e praia artificial.
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O projeto começou a sair do papel após o acordo e a desocupação da ilha. Conforme a coordenadora de Cultura da Unesco, Isabel de Paula, a previsão é de que as obras físicas sejam concluídas em 2025, quando se inicia a instalação da expografia.
“Desde 2022, foram realizadas as ações previstas nas fases 1 e 2, o que incluiu estudos e levantamentos técnicos, a fim de estabelecer as bases conceituais e museográficas para o museu, a identificação das caraterísticas físicas da Ilha das Cabras e da Praia de Pedras Miúdas, em Ilhabela. Foram feitos também estudos de patrimônio cultural, material e natural, projetos arquitetônicos e de acessibilidade do museu”, afirma.
Em junho e agosto de 2023 também foram realizadas as jornadas participativas nos municípios de Ilhabela, Caraguatatuba, Ubatuba e São Sebastião, com representantes do poder público e da sociedade civil.
A ilha está em área natural protegida pelo Estado de São Paulo, o Parque Estadual de Ilhabela, que por sua vez se encontra em região reconhecida pela Unesco, em 1999, como Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. No foco do projeto está a conservação da biodiversidade, de outros atributos naturais desse bioma.
O objetivo é valorizar o patrimônio étnico e cultural da região, segundo a coordenadora. “O museu apresentará uma perspectiva dos municípios da região (Ilhabela, São Sebastião, Caraguatatuba e Ubatuba), a partir de um ponto de vista ambiental e cultural, com protagonismo das comunidades tradicionais”, diz Isabel.
“As relações entre grupos humanos e o meio natural serão objeto de reflexão. Trata-se de um mergulho no conhecimento das tradições, expressões culturais e biodiversidade do litoral norte de São Paulo”, acrescenta.
Novo conceito
O museu ocupará todo o território da ilha, que tem cerca de 1,5 mil metros de extensão por até 500 metros de largura. “Ilha–Museu é um conceito inovador desenvolvido pela Unesco e parte da ideia de que não se trata de um museu contido numa ilha, mas de uma ilha que é um museu em sua totalidade, incluindo o ambiente marinho que a circunda e a cultura das comunidades tradicionais da região”, diz Isabel.
O objetivo é devolver a ilha à população como um espaço de preservação da cultura caiçara e das comunidades tradicionais das cidades do Litoral Norte.
A estrutura atual, que inclui píer de acesso, guarita, piscina, casa principal, casa auxiliar e casa das quatro suítes, está sendo reformulada. Os serviços incluem recuperação das costeiras, instalações elétricas e de iluminação, construção de píeres de acesso, reforma e adequação do percurso de visitação, que vai circundar toda a ilha.
Com as mudanças, haverá três salas de exposições, três mirantes e um espaço de contemplação, além do percurso sinalizado. Como o acesso à ilha é de barco, as formas de visitação ainda serão definidas.
A Ilha das Cabras fica a 100 metros de distância da costa de Ilhabela, no canal de São Sebastião e, por ser refúgio de fauna marinha, se tornou paraíso dos mergulhadores. Em seu entorno, é possível encontrar grande variedade de peixes, moluscos e tartarugas marinhas.
As rochas do fundo do mar são cobertas por corais, anêmonas, esponjas e estrelas-do-mar. Um santuário dedicado a Netuno, com uma estátua do deus dos mares, está a cinco metros de profundidade, sob as águas transparentes.
Ação tramitou por três décadas
A batalha judicial para a retomada da Ilha das Cabras se estendeu por mais de 30 anos. A ilhota, ocupada em nome da Bouganville Participações, havia sido transformada em moradia de praia do ex-senador Gilberto Miranda, dono da empresa. A devolução da área ao patrimônio ambiental da União mobilizou o MPF e o Ministério Público de São Paulo, em ação integrada.
A inscrição da ocupação da ilha pela Bougainville foi cancelada junto à Secretaria de Patrimônio da União. Miranda entrou com mandado de segurança, mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu em favor da União.
O ex-senador se comprometeu a indenizar os danos causados em razão das obras realizadas na ilha sem autorização dos órgãos competentes, como casa de veraneio, piscina, heliporto, garagem para jet-ski, mureta de proteção e praia artificial.
Os R$ 14 milhões serão usados para o custeio do Plano de Recuperação de Área Degradada e também para instalar o museu. “A criação do museu é uma forma de devolver à sociedade o que sempre foi de todos, mas por muito tempo foi utilizado em benefício de poucos”, disse a procuradora Maria Rezende Capucci, do MPF.
“Será um equipamento de visitação pública, que terá como principal objetivo levar aos visitantes a história e a riqueza cultural do litoral norte e dos diferentes grupos que vivem na região.”
Procurada, a defesa do ex-senador que atuou no processo não se manifestou. A reportagem entrou em contato com Gilberto Miranda e com a empresa, Bougainville Participações e Representações Ltda, e também não obteve resposta.
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