David Bennett, de 57 anos, ganhou um novo coração em janeiro, em um transplante. A diferença para outros pacientes é que ele recebeu o órgão geneticamente modificado de um porco – foi o primeiro procedimento do tipo já registrado. A recuperação do paciente nas semanas seguintes animou médicos, mas após dois meses ele não resistiu. O nome dele, porém, já entrou para a história: o fato de a cirurgia ter sido concluída com êxito e ele ter sobrevivido dois meses são considerados marcos para a medicina e a ciência.
Para comparação, o primeiro humano a receber transplante de coração convencional, em 1967, viveu mais 18 dias. Nos anos seguintes, a técnica foi melhorada e vem salvando milhares de vidas. “Vai aperfeiçoando a técnica, para que a cada vez se tenha resultado clínico melhor”, diz a geneticista da Universidade de São Paulo (USP) Mayana Zatz.
Nas últimas décadas, especialistas buscam alternativas aos transplantes homólogos (entre humanos), diante do cenário de alta demanda de órgãos e de escassez de oferta. Casos como o de Bennet e de dois outros pacientes, que receberam rins de suínos no ano passado, inauguram uma outra fase na área dos xenotransplantes (transplantes entre espécies diferentes).
Nos dois outros casos, nos Estados Unidos, o órgão modificado foi acoplado ao corpo de paciente com morte cerebral. Segundo publicações em revistas científicas e material divulgado à imprensa, os procedimentos foram bem sucedidos. Para os próximos meses, os cientistas esperam mais estudos em humanos. “Vai explodir agora”, avalia Mayana, envolvida em pesquisa de xenotransplantes no Brasil.
“Acompanhando a evolução desses primeiros pacientes, teremos mais informações do que tivemos nos últimos dez anos”, acrescenta o pesquisador Silvano Raia, pioneiro do transplante de fígado na América Latina.
Ganha espaço na comunidade científica a compreensão de que vale a pena autorizar testes do tipo. David Cooper, cirurgião do Hospital Geral de Massachusetts (EUA) e um dos pioneiros nas pesquisas de xenotransplantes, disse à revista Nature que está na hora de “irmos para as clínicas” para ver como esses órgãos se comportam em humanos.
Desafios
Em 1984, a recém-nascida Stephanie Fae Beauclair, com doença congênita terminal, recebeu transplante de um coração de babuíno e sobreviveu por cerca de 20 dias. O caso Baby Fae chocou a sociedade da época.
“(A reação) foi muito contrária tanto na classe médica quanto na sociedade”, lembra Raia. A criança, porém, não foi a primeira a receber órgão de espécie diferente. Desde os anos 1960, profissionais estudam essa possibilidade. Ele explica que, já na década de 1980, houve a compreensão de que porcos são a melhor opção. Isso por serem de fácil manuseio e similares, fisiológica e anatomicamente, aos humanos. “Há semelhança de 96% entre o genoma humano e o do suíno. Se fosse muito diferente, provavelmente não daria para usar os órgãos,” diz Mayana.
O transplante de um porco comum, porém, cria rejeição hiperaguda, que exige explante imediato. Por isso, até por volta de 2005, os cientistas se dedicaram a modificar geneticamente esses animais. Mayana destaca que os avanços nos xenotransplantes se deram por descobertas na genética. “Primeiro, a clonagem da ovelha Dolly (em 1996). Depois, o sequenciamento. E, mais recentemente, a técnica do CRISPR (tesoura genética)”, lista.
A edição genética envolve knockouts (bloqueios) e knock-ins (adições) de genes. O cientista pega células de porcos recém-nascidos, bloqueia os genes responsáveis pela produção dos açúcares que geram a rejeição e insere genes humanos para moderar a resposta imune do paciente. A célula modificada é introduzida em um óvulo sem núcleo (sem material genético). Mesmo não sendo uma clonagem, usa-se técnica de transferência de núcleo aprendida com a Dolly.
Mayana destaca que rim, coração, córnea e pele são as estruturas mais visadas nas pesquisas. Rins suínos modificados devem ser a aposta mais comum. Isso não é por acaso: se o xenotransplante falha, é possível colocar o paciente em hemodiálise, máquina que funciona como rim artificial.
Por ora, um grupo específico de pacientes deve receber o órgão modificado: doentes em fase terminal, quando o transplante seja a única terapia viável. “A previsão de sobrevida deve ser menor do que o tempo para receber transplante humano”, diz Raia. O paciente precisa também ser meticulosamente informado sobre a cirurgia e assinar documento de consentimento.
Avanços
A Food and Drug Administration (FDA), agência americana similar à Anvisa, tem avançado nas liberações. Em 2020, aprovou a primeira alteração genômica intencional em uma linha de porcos domésticos, os GalSafe, para uso como alimento e fonte potencial para tratamentos humanos. No fim de 2021, deu autorização emergencial para Bennett receber o coração suíno.
Com doença cardíaca terminal, Bennett havia sido considerado inelegível para o transplante convencional ou para receber bomba cardíaca artificial. “Era morrer ou fazer esse transplante”, declarou ele, um dia antes da cirurgia. “Sei que é um tiro no escuro, mas é minha última escolha”, disse.
“Se chegar ao ponto em que 100 pessoas no mundo tiverem mais 12 meses de vida (com coração de porco) nos próximos cinco ou dez anos, será incrível”, disse ao Estadão Darren Griffin, professor de Genética da Universidade de Kent, no Reino Unido.
Para que o órgão não fosse rejeitado pelo sistema imune, Bennett tomava remédios imunossupressores. Um bom sinal foi ele ter vencido a rejeição hiperaguda, que geralmente ocorre minutos após o enxerto, seguida de trombose disseminada nos vasos do transplante e necrose, exigindo explante imediato. Pesquisadores devem criar suínos cada vez mais “compatíveis” com os humanos, para evitar rejeição, além de calibrar o uso de imunossupressores.
Na opinião de Raia, os dilemas éticos não serão os mesmos da época do caso Baby Fae. “As sociedades que defendem os princípios éticos sempre visam a salvar vidas”, afirma. Já Griffin prevê pressão de ativistas defensores de animais. “Eles provavelmente vão achar problemático criar um animal para salvar uma vida humana”, aponta.
Ele também vê risco de desigualdades. “Sempre haverá doadores humanos. Cria uma ‘classe’ de ricos ou privilegiados o suficiente para receber um órgão humano. E o resto recebe o de um porco que, mesmo sendo o melhor do mundo, não funcionará tão bem quanto um humano”, destaca. “Quem vai escolher?”
Benefícios
A busca por “órgãos adicionais” tem por trás uma limitação dos transplantes homólogos: não há órgãos suficientes para quem precisa e milhares morrem nas filas de espera – o que deve aumentar com a tendência de envelhecimento populacional. “Com o decorrer dos anos, os resultados dos transplantes melhoraram muito”, diz Raia. “Ao mesmo tempo, tem aumentado a idade média da população e, em consequência, o número de doenças graves que podem chegar a estágios cuja única solução é substituir o órgão.”
“Vamos precisar de soluções”, ressalta o médico Gustavo Ferreira, presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). O Brasil fechou 2021 com 47.974 pacientes adultos e 976 crianças e adolescentes na espera. Esse total, porém, traz distorções criadas pela pandemia. “O número de pacientes cresceu, mas não conforme seria esperado pela redução de transplantes”, diz. “Reduzimos de 2019 para 2020 em torno de 30%. E 2021 foi o pior ano da atividade.”
O transplante renal é o mais demandado. Isso, explica Ferreira, pela possibilidade de hemodiálise, que permite o doente viver sem a estrutura funcional, e pelo avanço de doenças como hipertensão e diabete.
Cirurgião-chefe do serviço de transplante de fígado do Hospital de Base de Rio Preto, Renato Ferreira da Silva vislumbra, em uma segunda fase dos xenotransplantes, a possibilidade de um animal desenvolvido especificamente para um único indivíduo, com base nas características do sistema imune. “Você terá o seu porco-irmão”, explica. Isso associado a exames de previsão de desenvolvimento de doenças.
Conforme a revista Nature, há só uma empresa com instalações adequadas para criar porcos para estudo clínico, a Revivicor. A tecnologia é cara. “O que temos de ver é a relação de custo e benefício”, diz. Para o cirurgião, o xenotransplante permite reduzir outros gastos envolvidos em um transplante homólogo. Quando houver xenotransplantes em larga escala, aponta, será possível diminuir despesas com internações em UTI, de pacientes à espera de órgãos.
Haverá, também, mais previsibilidade no horário e evitar operações à noite – o que baixa os valores pagos à equipe. Como não é possível conservar os órgãos em boas condições por longos períodos, muitas vezes os profissionais são acionados às pressas para o transplante. Além disso, reduz-se o período em que o doente fica improdutivo economicamente, aguardando o novo órgão.
Pesquisa brasileira depende de recurso para construir criadouro de porcos
A equipe liderada pelo pesquisador Silvano Raia estuda xenotransplantes suínos desde 2017 no Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células Tronco da USP. Com a edição genética pronta, o grupo agora espera recursos para construir um criadouro biosseguro, ou pig facility, e contratar mais bolsistas. A iniciativa teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp) e da farmacêutica EMS.
Recentemente, após contato com cientistas de Auckland, na Nova Zelândia, começou a ser estudada a possibilidade de importar células embrionárias de uma raça de porco especial, segundo Raia. Esses animais pesam, no máximo, 140 kg – diferente de outras raças, que alcançam 400 kg. Além disso, os animais ficam isolados no Polo Sul, longe do contato com patógenos. Assim, a edição genética é simplificada. “Diminui o custo, o trabalho”, explica a geneticista Mayana Zatz.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.