Tirar vantagem ou ser criativo? Pesquisadores apontam o que define o ‘jeitinho brasileiro’

Pesquisador Ronald Fischer, em parceria com o professor Ronaldo Pilati, analisaram tema em questionário respondido por amostra de 200 pessoas ao longo de dois anos; publicação está disponível para download gratuito

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Por Vanessa Fajardo
Foto: Warley Venancio/Idor
Entrevista comRonald FischerPesquisador do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR)

Furar a fila de prioridade durante a campanha de vacinação da covid-19, estacionar o carro em vagas reservadas para idosos ou pessoas com deficiência - sem fazer parte desses grupos - são algumas das práticas negativas associadas ao ‘jeitinho brasileiro.’

Fenômeno cultural predominantemente ligado à malandragem e à necessidade de se tirar vantagem sobre alguém ou alguma situação, o ‘jeitinho’ pode ter várias configurações, mas nem todas são negativas, segundo o alemão Ronald Fischer, pesquisador do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR).

Fischer é doutor em psicologia e seu interesse pelo Brasil surgiu há 20 anos, quando descobriu que a capoeira reúne duas de suas paixões: música e artes marciais. A partir dessa experiência, Fischer explorou sua curiosidade para compreender o “jeitinho brasileiro” por meio de pesquisa realizada em parceria com o brasileiro Ronaldo Pilati, professor de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB).

Arte de improvisar e usar as ferramentas que tem também fazem parte do jeitinho brasileiro. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O resultado está no livro Jeitinho Brasileiro As bases psicológicas de um fenômeno cultural, publicado pela editora UnB e disponível para download gratuito.

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Fischer e Pilati aplicaram vários questionários para o mesmo grupo composto por 200 pessoas ao longo de dois anos para avaliar as mudanças de comportamento durante este período. Inicialmente a amostra era composta por 1 mil pessoas.

Além de preencher os questionários, a pesquisa também incluiu a participação do grupo em experimentos sociais em que eram avaliadas as reações dos entrevistados a partir de notícias sobre corrupção, casos de impunidade, entendendo como eles agiriam em determinadas situações éticas.

Com o livro, os pesquisadores querem furar a bolha da academia e atingir mais a população em geral. “O jeitinho é uma manifestação universal, é mais de uma coisa, tem um lado negativo, mas também tem o positivo. Sempre publicamos em revistas acadêmicas, mas achamos interessante conversar com um público maior, por isso a ideia do livro de livre acesso, para que todo mundo possa baixar. Em paralelo também estamos trabalhando para divulgar esse trabalho no contexto internacional acadêmico”, diz Fischer.

Morando no Rio de Janeiro, Fischer conta que os amigos estrangeiros consideram que ele já se tornou adepto do ‘jeitinho brasileiro.’ “Espero que seja o positivo”, brinca.

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Na conversa com o Estadão, ele conta mais sobre os principais achados da pesquisa:

Como você define o jeitinho brasileiro? Está relacionado a algo pejorativo?

Sabemos que o conceito está relacionado a algo ruim, mas uma das propostas do livro é justamente derrubar esse estigma. O ‘jeitinho’ é uma forma de resolver problemas e está relacionado a uma bagagem da história colonial. A burocracia impede que os problemas sejam resolvidos no dia a dia de forma fácil. Ela não funciona, então você usa um recurso, que é o ‘jeitinho.’ Pode ser bater um papo, fazer algo criativo ou até pagar alguém para resolver seu problema.

O ‘jeitinho’ pode ser configurado de diferentes formas, este é um dos principais achados da pesquisa. Pode ser várias coisas: o jeitinho simpático, o criativo e até aquele ruim, ligado à corrupção ou à quebra de normas.

Mas há o jeitinho bom de resolver problemas sem prejudicar ninguém. A simpatia, por exemplo, acho maravilhosa, ainda mais para um estrangeiro que é recebido no Brasil com muito calor humano.

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Sua pesquisa aponta que há o jeitinho ‘bom’ e o ‘ruim’. O que vai definir os caminhos para decidir entre um ou outro?

Há motivações psicológicas, todo mundo tem um perfil de personalidade. O amigável está mais predisposto a usar o jeitinho simpático. Já os menos altruístas, que pensam mais no próprio bem, devem usar o jeitinho negativo, que quebram normas. Há o viés da motivação geral da pessoa, mas sempre há um contexto.

Alguém mais amigável, mas preocupado com outra pessoa que não consegue resolver um problema, pode usar uma estratégia negativa. A pesquisa mostra que os gatilhos de estar em alguma situação pode fazer com que a pessoa tenha um comportamento negativo para resolver o problema. Há os dois lados.

O ‘jeitinho’ é algo específico do brasileiro ou há manifestações culturais semelhantes em outros países?

O jeitinho é uma forma da psicologia global, mas existem outras: o “guanxi” na China, o “wasta” nos países árabes e o “pulling strings” na Inglaterra. Em cada país ele se manifesta com suas diferenças. Por isso, não dá para dizer que o jeitinho é algo ruim do Brasil, porque este é um fenômeno humano que surge quando há desigualdades e desafios que as pessoas não conseguem resolver.

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Desrespeitar leis de trânsito é uma das práticas negativas associadas ao ‘jeitinho brasileiro.’ Foto: Werther Santana/Estadão

É algo que está ligado às desigualdades sociais? Em um país menos desigual, haverá menor incidência desse tipo de manifestação?

Vai ter menos fenômenos parecidos com o jeitinho no norte da Europa, onde há igualdade maior e as pessoas têm os mesmos recursos para resolver problemas. Mas, por exemplo, eu nasci e cresci na Alemanha Oriental, um país comunista com muitos problemas e barreiras e tínhamos várias formas de jeitinho. Quando cheguei ao Brasil, reconheci várias formas de se relacionar que se pareciam com situações de quando era criança, como se beneficiar de relações com pessoas importantes.

Desigualdade, é sim, um fator importante, assim como hierarquia social, mas provavelmente já existem outros fatores que estamos pesquisando para entender em que contexto esses fenômenos vão surgir e que formas vão assumir no contexto social.

O jeitinho tem alguma conexão geracional? Gerações mais novas ou mais velhas têm este fenômeno mais intrínsecos? Crianças já podem manifestar o jeitinho brasileiro?

As crianças copiam modelos do contexto social. Há uma influência forte da cultura nesse comportamento que a criança vai aprender desde bem cedo.

Como fazer com que o apenas o jeitinho positivo exista na sociedade brasileira?

Esta foi uma das motivações para escrever este livro: contribuir com uma visão da ciência social, da psicologia para a discussão. Não trazemos soluções, mas são provocações. O jeitinho simpático, criativo, precisa ser usado, reforçado, valorizado. Ao mesmo tempo, temos de pensar o que podemos fazer para diminuir essa demanda desse jeitinho negativo, ligado à corrupção. Temos de pensar como é possível aumentar o acesso das pessoas para resolverem problemas dentro de um contexto burocrático e hierárquico. Assim, será possível transformar o País em um lugar melhor para todos.

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