Na Ilha Anchieta, em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, aproximadamente 160 animais de 15 espécies exóticas à Mata Atlântica foram soltos há 41 anos. A ação do governo do Estado à época era uma tentativa de barrar a pressão do setor privado sobre a unidade de conservação recém-criada.
Mas o objetivo de proteger o parque estadual não deu certo. Por falta de condições ambientais adequadas, apenas cinco espécies prosperaram. Delas, duas apresentaram alto crescimento populacional devido à ausência de competidores e predadores. As superpopulações afetam o equilíbrio ecológico local.
Os dados foram levantados por pesquisadores do Laboratório de Biologia da Conservação, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e publicados em artigo científico na revista Global Ecology & Conservation em outubro do ano passado.
- Segundo a pesquisa, a população de cutias, por exemplo, passou de oito para os atuais 947 indivíduos. O roedor é responsável por predar ovos de aves que fazem ninhos no solo da floresta, prejudicando a avifauna da ilha.
- Já a população de saguis-de-tufos-pretos, originária do Cerrado, saltou de cinco para cerca de 600 animais. As superpopulações também prejudicam a regeneração natural do bioma onde foram inseridas.
O estudo concluiu que outras espécies, como o gambá-de-orelha-preta, a paca, o tamanduá-mirim e o tatu-galinha foram vistas na ilha apenas ocasionalmente. Já o bicho preguiça, o ratão-do-banhado, o tatu-de-rabo-mole, o tatu-peba e o veado-catingueiro não são observados desde 2002, sendo classificados pelos autores como possivelmente extintos.
O monitoramento sonda as razões para que algumas espécies tenham prosperado e outras, não. “Cada espécie possui uma capacidade de se adaptar ou não a novos ambientes”, explica o ecólogo Júlio Haji, pesquisador da Unesp, acrescentando que algumas espécies são mais resilientes do que outras.
- Fatores como dieta, temperatura, habitat original e ciclo reprodutivo podem ser decisivos para a adaptação de um animal a uma nova região.
“Esses animais introduzidos vieram de cativeiros, como zoológicos. Além disso, diversas espécies são de biomas com características bem distintas da Ilha Anchieta.”
Caminhando lentamente
O monitoramento feito pelos pesquisadores começou em 2002 e se estendeu por duas décadas. Com ajuda de 18 voluntários capacitados pelos próprios cientistas, 611 quilômetros da ilha foram percorridos.
A equipe, de 21 integrantes, precisou caminhar lentamente pelas trilhas, observando e contabilizando os animais, seguindo uma metodologia chamada de transectos lineares.
No total, foram 1.050 eventos de observação. “A grande quantidade de eventos dessas detecções nos permite estimar a densidade e o tamanho populacional dos animais que ocupam uma área”, afirma Haji. Segundo ele, as amostragens foram realizadas durante o dia e à noite, já que algumas espécies estudadas são noturnas.
A só 500 metros da costa de Ubatuba, a Ilha Anchieta tem 828 hectares de área e se tornou parque estadual em 1977. Características como ecossistema pequeno e rodeado por água, o que isola as espécies de mamíferos terrestres que vivem ali, são pontos importantes para a precisão dos dados coletados.
“Sabemos quantos indivíduos de cada espécie foram introduzidos, então entendemos que toda a população atual de cada espécie é oriunda desses mesmos indivíduos, já que não temos outros que imigraram ou emigraram da ilha”, explica Haji.
Segundo o pesquisador, a ausência de variabilidade genética das espécies na ilha pode ser um fator relevante para futuras estudos de aprofundamento nos impactos causados pelas superpopulações.
Castração de animais
Após a pesquisa da Unesp, programas de controle populacional de espécies foram implementados pelo parque. Esse é o principal meio apontado pelos pesquisadores para mitigar as consequências negativas da superpopulação de animais na ilha.
“Sugerimos ações de manejo com base em nossos resultados para a Fundação Florestal, órgão que gerencia a unidade de conservação, além de ressaltar a importância de dar continuidade ao monitoramento de fauna nos próximos anos”, afirma Haji.
Desde 2022, a Fundação Florestal realiza o manejo da fauna por meio da captura, marcação e castração de animais.
- Até o momento, 50 saguis foram castrados e soltos de volta na floresta. “Nesse momento, a população de saguis está estabilizada, mas, após as ações do manejo reprodutivo, espera-se que haja declínio acentuado”, afirmou a fundação, em nota.
Estão previstas ainda outras nove campanhas de manejo dessa espécie de primata. “O manejo reprodutivo é um projeto piloto e inovador no controle populacional”, declara o órgão.
“Após esta fase e a avaliação dos resultados e do monitoramento, será avaliada a necessidade de uma nova etapa”, acrescenta.
Segundo Vinicius Fiore, sócio gestor do Green Haven Hostel Ilha Anchieta, permissionário dos prédios do parque, “a intervenção científica é crucial para dar fôlego a outras espécies da ilha, como as aves, que podem sofrer com a competição desequilibrada causada pela superpopulação dos saguis”. A empresa reiterou o apoio às iniciativas da fundação e dos pesquisadores envolvidos no trabalho.
A colaboração com o laboratório da Unesp também influenciou a realização de projetos de monitoramento de fauna, como de borboletas e primatas, pelo órgão gestor da unidade de conservação, com a ajuda de seus funcionários e de outras parcerias. As iniciativas fazem parte do Programa de Monitoramento da Biodiversidade, iniciado há dois anos.
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“As coletas de dados dos primatas ocorrem entre junho e agosto, com o apoio de dois monitores de biodiversidade, e, em julho, com apoio de voluntários, sendo percorrido, no mínimo, 100 km”, informou a fundação. “Já os dados de borboletas são coletados em abril e maio, com a mesma equipe.”
Outra iniciativa importante para conter o impacto das superpopulações exóticas é a restauração ecológica tocada pela fundação na zona de recuperação do parque, que soma 186 hectares. Ali, espécies de plantas exóticas e/ou invasoras são retiradas para dar lugar a plantas nativas, fortalecendo o ecossistema local.
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Para o futuro, os pesquisadores do laboratório da Unesp vislumbram que novos dados sejam levantados na Ilha Anchieta. “Esperamos que jovens cientistas que estejam iniciando na pesquisa, através da iniciação científica ou de trabalhos de conclusão de curso, possam dar continuidade à coleta de dados nos próximos anos”, diz Haji.
Segundo a fundação, as pesquisas da Unesp despertaram a atenção sobre os possíveis impactos. “Além disso, recentemente, antes de avançar no manejo, o laboratório contribuiu na revisão do censo dos animais introduzidos e os resultados fortaleceram a importância de iniciar o manejo desses animais, principalmente os saguis”, completou.
A grande meta dos cientistas envolvidos no levantamento é que pesquisas semelhantes sejam aplicadas a outras áreas protegidas no País e se transformem em políticas públicas de proteção ambiental nacional. “Nosso maior desejo é que gestores e tomadores de decisão entendam a importância desse tipo de pesquisa e que ela seja realizada em outras unidades de conservação.”
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