Menos de quatro meses se passaram entre o primeiro registro da covid-19 e o início dos testes da vacina contra o coronavírus em humanos. O esforço para desenvolver o imunizante e reduzir sintomas e as mortes causadas pelo novo patógeno foi integrado, intenso e veloz. Em menos de seis meses, a ciência identificou e mapeou o vírus, e criou e testou uma solução que se provou eficaz contra uma doença até então desconhecida.
Traçando uma linha do tempo, os primeiros casos são de dezembro de 2019, na China. Em janeiro de 2020, o código genético do vírus estava todo mapeado e, em meio ao avanço exponencial de casos no mundo, foi disponibilizado em um banco de informações público. No Brasil, o primeiro diagnóstico veio em 26 de fevereiro. Dias depois, em 11 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) cravou: o mundo vive uma pandemia do novo coronavírus.
Enquanto o jeito de viver os dias mudava, o laboratório de uma das vacinas mais bem-sucedidas até aqui, a Pfizer, começava os primeiros testes em humanos. Isso foi no mês de maio. Em outubro já estava na última fase. A vacina da Pfizer tem 95% de eficácia e aval da OMS.
“Nunca antes na história da humanidade tivemos um avanço tão grande e tão rápido na ciência”, afirma Luiz Rizzo, diretor-superintendente de pesquisas no Hospital Israelita Albert Einstein. “Conhecemos o vírus há pouco mais de um ano e muito rapidamente soubemos a sequência genética, questões clínicas como onde atua e o que causa, identificamos variantes e temos quantidade importante de vacinas eficazes.”
Na prática, o que aconteceu foi a conexão de uma série de tecnologias que já vinham sendo desenvolvidas há anos, mas ainda não estavam no mercado. A pandemia foi a oportunidade de conectá-las e colocar toda a evolução em prática, acrescenta Flavio da Fonseca, virologista pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Segundo dados da OMS de meados de fevereiro, cerca de 10 vacinas já estão sendo aplicadas no mundo agora. Outras 200 estão em desenvolvimento, sendo 60 na fase de testes clínicos. Dada a primeira identificação do vírus, o avanço na ciência é gigantesco.
Entre as tecnologias postas à prova, que ficarão de legado, estão as vacinas de RNA, como são as da Pfizer e da Moderna. A inovação está na engenharia genética que copia o RNA, o material genético do vírus. É a chamada vacina gênica, que já tinha parte da tecnologia produzida há pelo menos 10 anos. A produção mais rápida e barata está entre as vantagens desse tipo de imunizante. Entretanto, é uma vacina que exige resfriamento a temperaturas inferiores a -50ºC, o que dificulta a utilização em várias partes do mundo.
Outro fator que acelerou a resposta científica foi a experiência adquirida na pandemia do H1N1, em 2009, e na epidemia de Ebola, em 2014. “Hoje somos mais proativos na busca por vacinas”, explica Ricardo Palacios, diretor clínico do Instituto Butantan. Para ele, a sorte também compareceu: “O tipo de resposta contra o SARS-CoV-2 não é tão complexo quanto é para o HIV, por exemplo”.
A consolidação de algumas vacinas não deve frear o desenvolvimento de novos imunizantes. “Não dá para colocar todas as fichas em poucas vacinas. Cada região tem sua realidade, a logística é delicada, e precisamos de mais opções”, afirma Palacios.
Máscara ainda importa
Israel, onde a vacinação está avançada, segue exigindo uso de máscaras. Isso porque ainda não há estudos comprovando que imunizantes reduzem a transmissibilidade. Todas as vacinas até aqui foram desenvolvidas para evitar sintoma e morte, e controlar a pandemia. “Talvez pela emergência da situação, não nos preocupamos em zerar a transmissão do vírus”, lembra Fonseca.
O efeito das vacinas sobre a transmissão do vírus – que fica maior a cada variante identificada – será testado aos poucos, enquanto a vacinação avança e também tende a ser considerado nos imunizantes ainda em desenvolvimento.
Palacios lembra que o objetivo das vacinas é controlar a pandemia e evitar internações e mortes em uma grande quantidade de pessoas. “É preciso uma cobertura vacinal que nos permita retomar a vida normal. Sem isso, as medidas protetivas como máscara e distanciamento serão uma constante.”Além disso, o surgimento de novas variantes também ocorre porque o vírus continua circulando bastante entre as pessoas. (SA)
Apesar de lacunas, Brasil mostrou excelência em testes clínicos
Das cerca de 10 vacinas que estão sendo aplicadas mundo afora, quatro foram testadas no Brasil e os testes de uma quinta começarão em breve. Para três especialistas ouvidos pelo Estadão, isso endossa que o País tem uma boa performance em pesquisas clínicas.
Na visão de Luiz Rizzo, diretor-superintendentede pesquisa no Hospital Israelita Albert Einstein, o País tem habilidade estatística, bons protocolos de pesquisa, organização de coleta de dados e acompanhamento dos resultados. “Apresentamos os resultados rapidamente.”
Outras expertises brasileiras são a seleção de centros de pesquisa e a logística, que considera o entendimento do território, cálculo de quantas doses serão aplicadas por dia e o tipo e a qualidade da informação que será dada no local.
Esses pontos se juntaram mais recentemente na execução do Projeto S, em Serrana (SP), que quer checar se a Coronavac é efetiva no controle da covid-19 dentro das comunidades. A cobertura vacinal garante redução importante e coletiva de manifestações moderadas e graves, internações e mortes? É isso o que o estudo-piloto em Serrana, o primeiro do tipo de mundo, quer saber.
“Não é só avaliar a eficácia, relacionada ao comportamento da vacina em um único indivíduo. É preciso entender a efetividade, que considera o coletivo”, diz Ricardo Palacios, diretor médico de Pesquisa Clínica do Instituto Butantan, instituição que coordena a pesquisa. A cidade no interior paulista tem 45 mil habitantes, sendo quase 29 mil vacináveis. As imunizações começaram no final de fevereiro e 93% da população está vacinada.
Até aqui, o Brasil participou de testes nas fases clínicas das vacinas Coronavac, Pfizer, Janssen e AstraZeneca. Os testes com a Covaxin, vacina indiana, começarão nas próximas semanas. O estudo será coordenado pelo Einstein, sob supervisão de Rizzo.
Apesar da capacidade técnica na fase final do desenvolvimento das vacinas, o Brasil tem lacunas nos estágios anteriores, destaca Flavio da Fonseca, virologista da Universidade Federal de Minas Gerais. “Temos boas cabeças e produção acadêmica e técnica de ideias, mas falta estrutura laboratorial para desenvolver e produzir o IFA (ingrediente farmacêutico ativo) internamente”. (SA)
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