Na Alemanha de 1919, falava-se muito em construir um mundo melhor. A 1.ª Guerra Mundial acabara em derrota arrasadora e caos político; muita coisa estava literalmente em ruínas. A necessidade de novas moradias era premente e não se tratava apenas da aparência das casas, mas de elas serem construídas rapidamente e a baixo custo. E a conversa ia além dos aspectos práticos. A urgência de se restaurar a ordem era geral. As pergunta que se faziam não eram apenas “que tipo de governo queremos?”, mas “o que é ser humano?” e “como poderemos viver juntos daqui para a frente?”
A escola artística Bauhaus nasceu de tudo isso. Sua meta era revolucionar a vida diária. Você vive desse legado, assim como, para bem ou para mal, os moradores de Brasília, Pequim, Teerã ou Tel-Aviv. A Bauhaus, que fará 100 anos neste ano, será tema de comemorações e reavaliações em todo o mundo. Na verdade, o aniversário já está provocando debates apaixonados, pois nenhuma outra instituição está tão intimamente identificada com a arquitetura modernista e o design.
Se você gosta de prédios arejados e iluminados, mobília funcional, desenho elegante e compreensível, letras sem penduricalhos, produções gráficas clean, então você gosta de Bauhaus. Se você odeia construções quadradonas, prédios de teto chato, padronização, morte da curva, quebra de diferenças culturais e planejamento abertamente racional, você também está com Bauhaus.
Os Museus de Arte de Harvard possuem a melhor coleção de peças Bauhaus encontradas fora da Alemanha. Sua nova exposição, The Bauhaus and Harvard, ilustra o alcance completo das atividades da Bauhaus durante os 14 anos de existência da escola em três lugares da Alemanha.
Depois que a escola foi dissolvida, sob pressão do nazismo, em 1933, muitas de suas figuras-chave emigraram para os Estados Unidos; assim, a exposição também acompanha o impacto da Bauhaus na educação e no design americano – Black Mountain College, na Carolina do Norte, New Bauhaus, em Chicago, Brooklyn College, em Nova York, Newcomb College, em New Orleans, e Harvard.
São quase 200 objetos em exibição – de exercícios em aulas de arte a estudos de arquitetura, em papel, a mobília, tecidos, fotografias e pinturas. Há marcantes trabalhos em grande escala, mas a ênfase é em trabalhos em pequena escala e folhetos, o que pode levar a indagar qual o alcance do impacto Bauhaus. Em uma palavra, é vasto.
A Bauhaus foi inaugurada em 1919 em Weimar, cidade de Goethe e Schiller, a menos de 20 minutos de carro de onde, 18 anos mais tarde, seria criado Buchenwald, o maior campo de concentração dentro das fronteiras da Alemanha. Se a crise da qual a Bauhaus surgiu foi causada por um mundo que desmoronava – pessoas separadas de suas comunidades, trabalhadores sem salários, nações vizinhas em guerra –, a solução, ao que parecia, era reunificar. “As artes hoje encontram-se em tal estado de isolamento que só podem ser resgatadas por meio do esforço consciente e cooperativo de todos os artesãos”, escreveu o arquiteto Walter Gropious, primeiro diretor da Bauhaus. Ele criou a escola fundindo academia de belas artes, arte aplicada e escola de artesanato.
Com essa nova e unificada abordagem de arte e design, a Bauhaus refletia o movimento Arte e Artesanato do século 19, que adotou o artesanato como antídoto contra a produção de objetos em série e os efeitos mais amplos da industrialização. Sob Gropius, a Bauhaus seguiu a tendência. Os primeiros e influentes professores da escola, como Paul Klee, Wassily Kandinsky e Johannes Itten, foram cultores do lado intuitivo e espiritual da arte e do aprendizado.
Por volta de 1923, porém, a ênfase mudou. Gropius anunciou o foco no desenho industrial. As fábricas – os “moinhos satânicos” da Revolução Industrial – não eram mais o inimigo. A indústria era a solução. E a indústria também determinaria a estética. Os prédios quadrados que Gropius projetava, com janelas amplas e espaços abertos, lembravam fábricas. “Chega de pensar, sonhar e esconder-se do mundo”, parecia ele anunciar. “É tempo de viver com propósito.”
A influência da Bauhaus na pedagogia foi tão profunda quanto seu impacto no design. Todo estudante da escola tinha de participar de um curso preliminar. Eram orientados inicialmente por Itten, cujos métodos eram holísticos, combinando composição e teoria da cor com exercícios calistênicos, e mais tarde por Josef Albers e Laszlo Moholy-Nagy, que tiveram grande impacto no ensino de arte e design nos Estados Unidos.
A abordagem deles exemplificava a busca da Bauhaus por uma nova unificação – não apenas da arte e do artesanato, mas também do indivíduo e da sociedade. A característica da tendência era a simplicidade. A ideia era que, mantido o foco no fundamental, a pulverização em diversas áreas de especialização tornava-se menos provável.
A exposição de Harvard, sob curadoria de Laura Muir, começa com exemplos de exercícios do curso preliminar. Nesses exercícios, em espírito de experimentação, os estudantes eram encorajados a descobrir as propriedades da forma, cor e materiais – para aprender, por exemplo, como o impacto visual de pedaços coloridos de papel pode mudar de acordo com alterações em coisas simples como a cor de fundo, o padrão das sobreposições ou mudanças de tom, e como as ilusões de recessão espacial ou transparência de podem ser igualmente afetadas. A exposição segue com uma seção dedicada a projetos radicais da Bauhaus para casas e mobília, depois com seções mostrando aulas de tecelagem e fotografia e passando para o avanço da Bauhaus para além da Alemanha – primeiro para Paris, depois, Estados Unidos.
Há também obras de figuras do modernismo cuja reputação transcende sua associação com a Bauhaus – de pintores Kandinsky e Klee a arquitetos e designers como Marcel Breuer, Gropius e Ludwig Mies van der Rohe. E ainda memoráveis criações de figuras dinâmicas como Albers, Herbert Bayer, Lyonel Feininger e Moholy-Nagy.
A Bauhaus era dominada por homens, mas Muir fez um esforço para destacar as influentes artistas têxteis Anni Albers e Gunta Stölzl, bem como o trabalho de outras menos conhecidas, entre ela a tecelã Otti Berger e a fotógrafa Lucia Moholy.
A mostra termina com a exibição de murais e esculturas de parede emprestadas pelo Harvard Graduate Center, projetado por Gropius e construído em 1950. A mais impressionante dessas obras é Verdure, um atordoante estudo de 6 metros de altura com formas dinâmicas e nuances de verde luminoso, de Bayer.
Gropius e colegas queriam que os artistas fossem úteis e ajudassem a reconstruir a sociedade, trabalhando com linhas racionais. A indústria deu aos designers da Bauhaus a oportunidade de conceber novamente o humano – libertado da humilhante herança de absurdos e antiquados ornamentos que Gropius chamava de “embelezamento fofo e romântico”. Isso, porém, significava que os designers da Bauhaus estavam impacientes com as variações culturais e idiossincrasias individuais. “O individual perde cada vez mais significância”, escreveu Mies. “Ele não nos interessa mais.”
Mesmo que comemoremos todas as contribuições da Bauhaus, essas palavras deveriam soar como alarme para qualquer um consciente da evolução do século 20 e, a propósito, qualquer um preocupado com as conveniências tornadas possíveis por algoritmos e inteligência artificial (como Lionel Trilling advertiu, “alguns paradoxos de nossa natureza nos levam, uma vez que fizemos dos amigos objeto de nosso interesse, a prosseguir e fazer deles objeto de nossa piedade, depois de nossa sabedoria e, finalmente, de nossa repressão”).
O modernismo da Bauhaus é discutido hoje como se fosse apenas mais um estilo, como a art déco, mas a escola foi também uma ideologia. Embora suas raízes estivessem no Iluminismo europeu, seus fundadores estavam convictos de que ela transcendia a história. Tudo se resumiria à verdade, à transparência e à razão. Símbolos datados deveriam ser descartados. O que era reprimido deveria se tornar visível.
Entretanto, o saudável ideal de unificação se transformou rapidamente num impiedoso movimento para a uniformidade. A Bauhaus gerou milhões de edificações de uma feiura sem par, contaminando o desenvolvimento urbano em todo o mundo. Toda diferença local era suprimida. Por trás do admirável idealismo da Bauhaus, percebe-se uma espécie de asco pelo diferente, pela humanidade como ela é.
A Bauhaus foi execrada não apenas pelos nazistas de Hitler, que a associavam a comunistas e judeus, forçando seu fechamento quando chegaram ao poder, mas também pelos comunistas de Stalin, que rejeitavam a estética modernista como abstrata e elitista. No longo prazo, porém, a perseguição tanto pela direita quanto pela esquerda totalitárias contribuiu para fazer do estilo modernista da Bauhaus a estética preferida da esquerda democrática, ampliando sua influência – e talvez prolongando a cegueira das pessoas em relação a suas falhas inerentes. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.