Perguntam-me amiúde como seria se o jornalista Carlos Castello Branco, o Castelinho, vivesse nos dias de hoje. Respondo por turnos. Para começar, ele teria 100 anos, completados recentemente, em 25 de junho de 2020. Em segundo lugar, não concebo como faria para redigir sua tradicional coluna política num computador, ao qual nunca se acostumou, dado que nunca abandonara em definitivo sua arcaica Olivetti. Em terceiro, estaria na linha de frente da resistência às instabilidades que a democracia brasileira tem vivido. E em quarto, uma dúvida: para que jornal ele estaria escrevendo?
Castelinho nunca foi temerário, era cirúrgico; nunca foi ousado, era resolutivo; e nunca foi apressado, era paciente. Em suas 7.446 colunas, entre janeiro de 1963 e abril de 1993, lidas sofregamente todos esses anos pela inteligência brasileira – era visitando seu artigo diário no Jornal do Brasil que se sabia o que estava acontecendo na República – ele atravessou regimes e governos. Começou sob o governo caótico de João Goulart, entrou pelo golpe de 1964, balançou no autogolpe de 1968 e voltou ao esplendor no final do governo militar e, em particular, no processo de redemocratização, seu canto de cisne. Foi singular por um conjunto seletivo de atributos. Em primeiro lugar, a acurácia na apuração; buscava sempre as melhores fontes e essas fontes falavam com ele porque era prestígio ver seus nomes na Coluna do Castello ou ter suas posições avalizadas pelo cronista maior; afinal, era ali que, na prática, se construía o cenário político brasileiro. Em segundo, ao longo dos anos, Castelinho ganhou a absoluta confiança de suas fontes. Em terceiro, não fugia das verdades incômodas. Em quarto, tinha um texto direto e elegante que não enganava o leitor, listava informações que lhe permitia entender o processo. Em quinto, era dono de uma memória elástica, que lhe permitia nunca anotar conversas e entrevistas, o que repassava confiança. A mineiridade adquirida em minúcias, a partir da adoção da pátria alterosa, complementava suas qualidades. Seus artigos diários alinhavam os fatos, mas também construíam uma proposta narrativa, que se ordenava a partir de uma crença geral – a indispensabilidade de cultuar as liberdades. Com as pressões da ditadura militar, foi cifrando suas interpretações, escrevendo com simbologias que seus leitores aprenderam a captar e interpretar. Importava alguns eufemismos que suavizavam a narrativa, mas o forte do seu texto era a linguagem direta, objetiva e ancorada em fatos, pessoas e datas, confrontando suavemente versões díspares. Não era um texto de redator, mas de comentarista que interpreta a realidade política. Nunca conseguiu nutrir simpatia pelos militares em geral, talvez por ver neles um repetido quisto autoritário que se arrastaria pelo século 20. Tinha razões gerais – a eterna e incômoda tutela militar sobre os governos civis, o golpe de 1964, a agudização do endurecimento em sucessivos atentados às instituições democráticas – e razões pessoais, estas centradas na morte do filho Rodrigo, em 1976, num acidente de carro inexplicável, que lhe legaria uma dúvida irrespondível para o resto da vida. A despeito disso, foi admirado por alguns generais – e até por Emílio Médici, o mais duro deles. Em entrevista ao CPDOC, Roberto Médici contou que a Coluna do Castello era a primeira leitura de seu pai todos os dias, quem sabe, cotejada com as informações recebidas do SNI, no auge da ditadura. Na viagem oficial que fez aos EUA, Médici apresentou Castelinho ao então presidente Richard Nixon como “o mais importante jornalista brasileiro”. Teve um papel particularmente importante na transição da ditadura militar para os governos civis, em 1984/5. Em plena maturidade, conversava amiúde com Tancredo Neves (embora este não fosse sua amizade dileta, entre os mineiros), com Ulysses Guimarães (a quem considerava, no mínimo, estouvado e um tanto radical em certas ocasiões) e principalmente com José Aparecido, sua mais fraterna amizade no final da vida. Essas conversas eram mais que coleta de informações – eram uma troca de interpretações da realidade. Ao final, respondo à dúvida lançada no primeiro parágrafo: onde Castelinho estaria trabalhando hoje, se vivo fosse? Certa vez, ele foi convidado por Roberto Marinho para trabalhar em O Globo, principal concorrente do Jornal do Brasil no Rio de Janeiro e, polidamente, recusou. Mas no auge de uma das muitas crises que viveu no JB, sempre pressionado pelo dono do jornal, Nascimento Britto, para aliviar críticas à ditadura, em abril de 1969 Castelinho ligou para seu amigo Fernando Pedreira, então diretor de redação do Estadão, e pediu-lhe para sondar o dono do jornal, Júlio de Mesquita Filho, sobre sua eventual transferência. Sabia que no Estadão jamais seria coagido a nada, porque o jornal nunca aceitara pressões da censura. Pedreira retornou a ligação no dia seguinte: “Pode vir. Começa amanhã.” Castelinho acabou dobrado pela nostalgia e ficou no JB. Mas quando o JB parou de circular, ele talvez voltasse a ligar para a casa da família Mesquita. Portanto, diria que, se fosse vivo, muito provavelmente Castelinho estaria escrevendo bem aqui ao lado, nestas páginas tão centenárias quanto ele.Carlos Marchi é jornalista e escritor, autor de “Todo aquele imenso mar de liberdade”, a biografia de Carlos Castello Branco (Editora Record)
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.