100 anos de distopia: como o pessimismo virou uma febre literária

Um século após clássico de Ievguêni Zamiátin, obras distópicas estão cada vez mais em voga

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O ano de 2019 coroa uma década em que a distopia voltou à tona. Nos últimos dez anos, as buscas na internet por esse termo aumentaram em mais de dez vezes no Brasil – o pico da década foi outubro de 2018, de acordo com o Google Trends. Curiosamente, há exatos cem anos, Nós, a primeira obra indiscutivelmente pertencente a esse gênero, estava sendo escrita na União Soviética, por Ievguêni Zamiátin. Ou seja, em seu centenário, o espectro da distopia ronda o mundo com vigor cada vez maior, tanto em termos de popularidade quanto em novas produções. Para investigar por que vivemos tempos tão propensos a criar e consumir esse tipo de narrativa, a última edição do Aliás em 2019 é um especial sobre a distopia, com textos sobre literatura nacional e estrangeira, cinema e a filosofia, além de uma indicação de dez obras para ler no gênero.

Cena final de 'Planeta dos Macacos' (1968), que adapta distopia de Pierre Boulle Foto: 20th Century Fox

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Antes de mergulhar na distopia, porém, é importante compreender seu suposto antônimo: a utopia. O crítico literário croata Darko Suvin a define como “construção de uma comunidade particular onde instituições sociopolíticas, normas e relacionamentos entre pessoas são organizados de acordo com um princípio radicalmente diferente que na comunidade do autor.” A palavra foi cunhada por Thomas More em seu livro Utopia, de 1516, no qual imagina uma ilha teoricamente perfeita. Para o crítico britânico Adam Roberts, a literatura já imaginava mundos melhores havia séculos. “O que torna More diferente é que ele tentou imaginar uma sociedade melhor de forma sistemática; é ter abordado a pergunta ‘como as coisas podem melhorar?’ por uma, para usar a expressão anacrônica, construção de mundo. Não basta que este ou aquele elemento individual seja melhor. Toda a estrutura da sociedade deve ser reimaginada.”

Prolífico nesse tipo de obra, o século 16 é um excelente exemplo da impossibilidade de uma utopia comum. O católico alemão Kaspar Stiblin descreveu um papado ideal em Commentariolus de Eudaemonensiun Republica (1555), quase o oposto de Wolfaria (1521), uma narrativa utópica luterana de Johann Eberlin von Günzburghas. Em 1602, o clérigo italiano Tommaso Campanella escreveu A Cidade do Sol, que trata de um reino governado por um monarca benevolente segundo suas concepções – que Mark T. Riley, professor de latim da California State University, classificou como “modelo de um terrível Estado totalitário”.

Ou seja, o mundo perfeito para um, caso seja aplicado, torna-se um pesadelo para todos os demais, obrigados a conviver com os caprichos de quem quer que o tenha idealizado – portanto, toda utopia guarda em si uma distopia. Não como um antônimo, mas sim como parte integrante. 

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É claro que antes de Zamiátin escrever seu pioneiro Nós, já havia uma literatura protodistópica em formação. A França tecnológica de Paris no Século 20 (1863), de Júlio Verne, ou o futuro entrevisto pelo vitoriano sem nome de A Máquina do Tempo (1895), de H.G. Wells (que voltaria ao tema três anos depois em O Dorminhoco), são comparáveis aos mais angustiantes cenários imaginados pela distopia. O futuro com relações humanas mediadas por computadores de A Máquina Parou (1909), de E.M. Forster, antevê dilemas pelos quais estamos passando ainda hoje. O Tacão de Ferro (1908), de Jack London e A Morte da Terra (1910), de J.H. Rosny Aîné, que ganhou nova edição no Brasil este ano, são alguns exemplos desse período embrionário que culminaria em Nós.

Os estados totalitários descritos por esse gênero desde Zamiátin eram, afinal, a utopia dos tiranos que os estabeleceram. A persistência desse assunto na literatura mostra que esse tipo de obra atravessou todas as décadas do último século, reunindo e refletindo os principais medos da sociedade: Thea Von Harbou (Metrópolis, de 1925), Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo, de 1932), Karin Boye (Kallocaína, de 1940), George Orwell (1984, de 1949), Ray Bradbury (Fahrenheit 451, de 1953), Anthony Burgess (Laranja Mecânica, de 1962), Chico Buarque (Fazenda Modelo, de 1974), Margaret Atwood (O Conto da Aia, de 1985), Octavia Butler (A Parábola do Semeador, de 1993), China Miéville (A Cidade & a Cidade, de 2009) e Bazma Abdel Aziz (A Fila, de 2016). Apenas nessa pequena seleta há autores do Brasil, EUA, Inglaterra, Alemanha, Suécia, Egito, Rússia e Canadá.

Mas não são apenas políticos autoritários que permeiam as preocupações da ficção distópica. Por vezes, o próprio povo é o agente do caos em que se encontra. Diário da Guerra do Porco (1972), do argentino Adolfo Bioy Casares, narra um verdadeiro confronto sanguinário que surge espontaneamente entre jovens e velhos; À Beira do Fim (1966), de Harry Harrison, mostra os devastadores efeitos da superpopulação; em Battle Royale (1999), do japonês Koushun Takami, estudantes são colocados para lutar entre si até a morte. Cada uma dessas obras extrapola um problema de fato existente na sociedade: o desajuste geracional, a superpopulação e a banalidade da violência. A distopia, afinal, sempre parte da realidade para conceber seus mundos.

Há diversas vertentes, cada uma amplificando temores distintos da humanidade. Doenças, por exemplo, são uma temática fértil: os vencedores do Nobel de Literatura Albert Camus e José Saramago trabalharam nesse registro em A Peste (1947) e Ensaio Sobre a Cegueira (1995). 

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No entanto, a categoria mais explorada dentre todas é a dos romances pós-apocalípticos. Um clássico do gênero é Um Cântico para Leibowitz (1959), de Walter M. Miller Jr., que descreve uma sociedade fraturada de monges vivendo em meio aos escombros do mundo contemporâneo. A Estrada (2006), de Cormac McCarthy, explora a relação de pai e filho em meio ao apocalipse. Planeta dos Macacos (1963), do francês Pierre Boulle, conta o declínio da civilização humana, escravizada por símios. Só a Terra Permanece (1949), de George R. Stewart, mostra a humanidade tentando se reerguer após uma catástrofe. Oryx e Crake (2003), de Margaret Atwood, dá início a uma trilogia em que mudanças climáticas, animais geneticamente modificados e a arrogância humana destroem a sociedade.

Recentemente chegou ao Brasil o livro O Quase Fim do Mundo (2008), do angolano Pepetela, que começa da seguinte forma: “Chamo-me Simba Ukolo, sou africano, e sobrevivi ao fim do mundo. Se o fim do mundo quer dizer o aniquilamento absoluto da humanidade, haverá algum exagero na afirmação, pois escapou alguém, eu, Simba Ukolo, na ocorrência”.

Na obra, quase todas as formas de vida animal somem instantaneamente do planeta, e cabe a alguns sobreviventes compreender as razões por trás da tragédia – e refundar a humanidade partindo novamente da África subsaariana. Claramente metafórico, o livro mostra como esse grupo multiétnico, um microcosmo da humanidade, carrega em si todos os preconceitos de antes, e como surgem as opressões. 

Também em 2019, foi publicado O Céu de Pedra, de N. K. Jemisin, que contraria o protagonista de Pepetela: “Quando dizemos que ‘o mundo acabou’, lembre-se: normalmente é mentira. O planeta está bem”. O romance encerra a premiada trilogia A Terra Partida, que se passa em um continente no qual terremotos, erupções vulcânicas e catástrofes tectônicas são extremamente comuns, e usa de elementos de fantasia para tratar de racismo estrutural e de como o Ocidente se desenvolveu a partir da escravidão de outros povos. “Para uma sociedade construída com base na exploração, não existe ameaça maior do que não restar mais ninguém para oprimir.”

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Em entrevista ao Aliás, Jemisin comentou sobre o poder que distopias como a dela têm de influenciar o mundo real e deu sua explicação sobre por que esse tipo de obra segue em alta: “Eu me surpreendi quando Trump foi eleito e as vendas de meus livros dispararam. Muitas pessoas disseram que estavam deprimidas e se sentiram melhores por ler minha história. Se as pessoas veem personagens sobrevivendo a condições muito piores que as delas, elas criam esperança com isso. Essa literatura ajuda as pessoas a perceberem que há uma forma de superar tempos difíceis e preservar algo seu e da sociedade intactos.”

Uma das mais instigantes obras dos últimos anos nesse estilo é Nova York 2140, de Kim Stanley Robinson, que chegou este mês ao Brasil. O livro imagina uma Manhattan alagada depois do nível do mar subir 15 metros, impulsionado pelo aquecimento global, em uma premissa semelhante à de The Drowned World (O Mundo Afogado, 1962), de J.G. Ballard. Nessa Nova York submersa, a vida ainda prospera, com barcos trafegando por entre os prédios e, é claro, o mercado financeiro lucrando com a situação. Um dos protagonistas, Franklin Garr, é um ganancioso operador da Bolsa que criou um índice imobiliário para áreas alagáveis, lucrando com a situação dos miseráveis que moram nesses prédios condenados. “O capitalismo certamente tentaria tornar lucrativo até o fim do mundo”, afirmou Robinson ao Aliás.

Nova York 2140 se insere no subgênero de ficções climáticas, um nicho ainda mais específico que vem crescendo dentro da distopia pós-apocalíptica. Robinson explica por que esse tipo de narrativa vem ganhando força atualmente: “Enquanto o aquecimento global vem se tornando um dos problemas centrais de nossos tempos, talvez o central, uma cruz na história humana e planetária, as pessoas precisam da ficção para ajudá-las a pensar sobre isso. É simplesmente uma necessidade cultural, um tipo de fome: nós sempre queremos e precisamos de arte para interpretar a realidade e criar significado.”

Talvez por isso seu livro sintetize tão bem a questão da dualidade utopia/distopia: depois que o mundo acaba, tudo continua – e a distopia de muitos continua alimentando as fornalhas da utopia de alguém, como sempre. 

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