A importância da participação feminina no processo de Independência do Brasil em 1822 aumenta à medida que surgem novos estudos a respeito. “Nos últimos anos, apareceram pesquisas em outros centros além de São Paulo, Rio e Belo Horizonte, que trouxeram documentos até então desconhecidos e, com isso, despontaram novos nomes”, comenta a historiadora Mary Del Priore, autora de livros essenciais sobre o tema como o recente A Viajante Inglesa, o Senhor dos Mares e o Imperador na Independência do Brasil (Vestígio), em que destaca uma dessas mulheres, a inglesa Maria Graham. “Foi assim que viemos a conhecer a combatente Maria Quitéria (1792-1853), a freira Joana Angélica (1761-1822) e a pescadora Maria Felipa (?-1873).”
Maria Leopoldina
O desafio é enfrentar a pouca documentação sobre mulheres daquele período. “Sabe-se que algumas atuavam como espiãs e levando comida e bebida aos soldados do imperador, mas seus nomes não são conhecidos”, completa Del Priore, cuja lista é completada pelo nome mais reluzente, o da nobre Maria Leopoldina de Habsburgo (1797-1826), que se tornaria a primeira imperatriz do Brasil. Austríaca ligada à dinastia dos Habsburgos, cuja tradição era a de aumentar territórios e de se manter nos centros do poder, era uma mulher culta, com interesse pela mineralogia e aulas de ciências naturais. “Fiel, portanto, à tradição da família, Leopoldina era favorável à independência brasileira para garantir a manutenção do poder real de d. Pedro, que seria transmitido a seus descendentes”, observa Del Priore. “Em outras palavras, ela não queria deixar seus filhos sem coroa. Ela não esconde esse temor nas cartas ao pai a quem revela o início do seu isolamento, uma vez que a família imperial austríaca representava o que havia de mais conservador e tradicional, numa época em que revoluções liberais varriam a Europa.” Com isso, ela participou de forma decisiva em momentos cruciais do processo político. O comportamento começa a mudar ao final de 1821, quando Leopoldina passa a incentivar d. Pedro, embora continuasse a escrever ao pai lamentando a situação e prevendo um final “sujo” – palavra sua – para os fatos. Em janeiro de 1822, por exemplo, quando seu marido, o príncipe regente Pedro, estudava a possibilidade de atender a um pedido do pai, d. João VI, para voltar a Portugal, o que consolidaria o retorno do Brasil à condição de colônia, Leopoldina empenhou-se em convencê-lo a ficar no País – o que acabou acontecendo em 9 de janeiro, que se tornou conhecido como Dia do Fico. “Ela é a principal articuladora do palco íntimo do Fico”, observa o historiador Paulo Rezzutti. “Nas cartas da época, fica muito clara a articulação dela para que Pedro permanecesse no Brasil.” Segundo Del Priore, Leopoldina vai lentamente se convencendo da importância da emancipação do País. “Ela pensa na união do Brasil e em seu marido como monarca reinante.” Determinada, participa de reuniões ao lado de José Bonifácio no processo de independência. “Quando o então príncipe regente viaja a São Paulo, em setembro de 1822, ela fica no Rio como regente e chefia a reunião do Conselho de Estado”, comenta Rezzutti. De fato, quando estava atuando como regente, Leopoldina recebe a notícia de que Portugal imporia sanções econômicas ao Brasil pela desobediência de Pedro, que se recusava a voltar para a metrópole.
Ao lado de Bonifácio, ela reúne o Conselho no dia 2 de setembro e envia por carta os despachos da discussão, incitando o marido a declarar a Independência antes que fosse tarde. Pedro recebeu a correspondência no dia 7, às margens do Riacho do Ipiranga, e ali decide romper com Portugal. “Nas memórias do conselheiro Drummond, fica muito clara a perspicácia da princesa em ver que a independência era o caminho a seguir. O próprio Bonifácio, a certa altura, vai brincar dizendo que queria que o príncipe fosse ela”, completa Rezzuti. Se transitava com certa desenvoltura no âmbito político, Leopoldina sofria com problemas de saúde – a gravidez era uma constante na sua rotina: teve sete filhos nos nove anos em que viveu no Brasil, mas três não passaram da infância. Sua morte prematura, aliás, aconteceu por conta de uma septicemia decorrente de um aborto espontâneo. Nessa fase, foi importante sua amizade com a pintora, escritora e historiadora inglesa Maria Graham.
Maria Graham
Filha de um oficial da Marinha, era uma mulher acostumada a fazer muitas viagens – chegou a acompanhar o pai às Índias – e, depois de casada, também ao lado do marido, Thomas Graham, comandante de um navio-escola, onde ela tinha a função de ministrar aulas a futuros oficiais. “Maria esteve presente em importantes eventos históricos no Brasil, por onde passou entre 1821 e 1825”, atesta Mary Del Priore. “Ela descobre como é constituída a resistência nacional aos portugueses nas diversas manifestações separatistas que animavam as províncias do Norte, muitas vezes formada por velhos e crianças. Maria descreve a fragilidade e também a xenofobia em relação a Portugal.”
Por meio dos escritos de Maria Graham, que produziu livros e diários, além de cartas, é possível também notar como os ingleses acompanhavam atentamente o que se passava na colônia, especialmente na sociedade. “A Inglaterra era uma referência muito forte na composição da população: tudo o que era inglês era referência e a aproximação era tamanha que d. João VI, pai de d. Pedro, era chamado de ‘cônsul inglês’.” A historiadora chama atenção para um detalhe: o fato de Maria notar, na sociedade brasileira, a presença de negros alforriados que alcançam uma certa independência financeira, mantendo inclusive escravos entre seus domínios. “Maria era um exemplo das mulheres letradas daquele tempo, que sabiam da importância da liberdade. Portanto, foi amiga próxima de Leopoldina – eram duas estrangeiras no palácio, então há este aspecto de Maria aparecer como testemunha de outra mulher que sofria como ela.” A proximidade entre elas se deveu também ao fato de a inglesa ter sido, por um breve período, a governanta da princesa d. Maria da Glória, filha primogênita de d. Pedro I e de d. Leopoldina.
Joana Angélica
O Brasil daquela época foi marcado por diversas turbulências, que permitiram o surgimento de mulheres de fibra. É o caso da freira Joana Angélica, responsável pelo Convento da Lapa, em Salvador. Para muitos historiadores, ela é considerada a primeira mulher vítima do processo de Independência do Brasil por ter sido assassinada em fevereiro de 1822. O crime aconteceu quando soldados portugueses tentavam invadir o claustro religioso feminino em busca de munição, pois acreditavam que ali estariam escondidos os revoltosos contrários ao comando militar português. Joana Angélica impediu a entrada dos militares, bloqueando-a com seu próprio corpo, e foi morta com um golpe de baioneta. “Era uma mulher de importante família na Bahia, chegou a ser superiora em seu convento”, descreve Mary Del Priore. “E seu assassinato criou um fato jornalístico tão importante que, em Portugal, decidiu-se não publicar uma linha – houve um momento de abafamento pois o crime era considerado um sacrilégio.”
Maria Quitéria
E, se Joana foi enaltecida, a soldada Maria Quitéria de Jesus sofreu uma campanha difamatória por ter escondido sua condição de mulher para lutar no Exército. Revolucionária, foi a primeira combatente da história da corporação brasileira. Nascida em Feira de Santana, na Bahia, decidiu que lutaria como soldado quando estava com 30 anos – a vontade nasceu com a disposição de enfrentar resistências portuguesas à independência do País. Assim, quando surgiu a notícia de que sua vila reuniria homens para lutar no movimento, Quitéria decidiu que participaria. Foi, no entanto, proibida pelo pai. A solução foi se disfarçar de homem, adotando o nome de Medeiros e, utilizando a farda do cunhado, entrou para o regimento da artilharia.
Desconfiado dos motivos do desaparecimento da filha, o pai foi encontrá-la em um acampamento militar. Apesar de ordenada por ele para retornar para casa, Quitéria contou com a proteção do comandante do regimento, major José Antônio da Silva e Castro, que, embora surpreso com a revelação, não só não liberou Quitéria – um de seus melhores soldados – como também não a designou para os afazeres domésticos. Por sua atitude de bravura, Maria Quitéria foi condecorada com o título de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, entregue por d. Pedro I, em 1823. Já a história de outra heroica baiana, a líder comunitária Maria Felipa, não tem muitos detalhes – sua façanha sobreviveu graças à tradição oral.
Maria Felipa
Negra, pobre e iletrada, ela vivia na Ilha de Itaparica, onde teria engajado outras mulheres da ilha para lutar contra os portugueses. “Uma de suas melhores histórias foi muito divulgada pelo pai do escritor João Ubaldo Ribeiro, que também era de Itaparica, e dizia que Maria Felipa convencia as mulheres mais bonitas a passearem pela praia a fim de atrair soldados portugueses, que eram mortos em seguida”, conta Del Priore. “Ela também foi uma autêntica heroína.”
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