O País do carnaval virou o País da micareta. E se o nível de tudo por aqui baixou, por que não haveria de baixar o padrão da folia fora de hora?
As arruaças fascistas organizadas pelas falanges bolsonaristas e até agora poupadas pela polícia, apesar de criminosas em mais de um sentido, não perturbaram apenas rodovias, ruas e quartéis, mas também o juízo do vice-presidente Mourão, que as justificou como meras reações catárticas ao indesejado triunfo eleitoral de Lula.
Catarse, desde a Grécia, é sinônimo de purificação, alívio da alma, satisfação positiva, mas também, na acepção médica, “evacuação dos intestinos”.
A “catarse” dos bolsonaristas desconcertou até a comentarista da CNN de Portugal, Amanda Lima, que confessou não ter conseguido explicar aos telespectadores o porquê daqueles paroxísticos pedidos de socorro a extraterrestres por um bando de patridiotas de Porto Alegre, na semana passada. Aliás, se não confiam mais nas Forças Armadas, só em ETs, por que continuam fazendo chacrinha na frente de quartéis?
Na Idade Média, aparentemente tão nossa contemporânea desde janeiro de 2019, aqueles fanáticos teriam sido submetidos à extração da pedra da loucura que, rezava a superstição medieval, escondemos na moleira.
Era assim: um cirurgião trepanava o cocuruto do maluco e de lá retirava a pedrinha, como se fosse um pequeno tumor. Hieronymus Bosch retratou uma operação dessas num pequeno quadro exposto no Museu do Prado, meio engolido pelo gigantesco Jardim das Delícias, o mais conhecido pesadelo boschiano.
Inspirado por ele, o chileno Benjamín Labatut, por sinal nascido na Holanda, escreveu um fascinante ensaio sobre o caos, a loucura e outras exorbitâncias do tempo presente para uma coleção de pequenos textos de reflexão da editora Anagrama, que a Todavia acaba de traduzir, com o título de A Pedra da Loucura. Dividido em duas partes (uma sobre a extração, outra sobre a cura), tem só 69 páginas, o bastante para se chancelar o esplêndido ensaísta que nos foi revelado em Quando Deixamos de Entender o Mundo, no início deste ano.
Spoiler: Bolsonaro é mencionado na página 27, fechando o trio de “lunáticos” (Trump e Boris Johnson, os outros dois) “levado ao poder pelo vendaval de violência policial e social” que varreu o planeta na década passada, quando “as velhas histórias que deram sentido ao mundo entraram em colapso” – quando, enfim, deixamos de entendê-lo e fomos engolfados pelas insânias da extrema direita, que parece ou finge viver num mundo paralelo desconectado da realidade, do passado “e sem nenhuma ideia nítida de futuro”.
A epígrafe do ensaio é a mais manjada ruminação de Antonio Gramsci (“O velho está morrendo e o novo não pode nascer: nesse interregno surgem os sintomas mórbidos mais variados”), perfeitamente aplicável à situação vigente no Brasil, com seus dois presidentes.
Para encorpar suas ideias, Labatut recorreu às divindades arcaicas que assombram a ficção do americano H.P. Lovecraft, à lógica radical do matemático alemão David Hilbert e às alucinadas iluminações metafísicas de Philip K. Dick, a fonte literária de Blade Runner.
Para Labatut, vivemos já de algum tempo no mundo de Dick, num “pesadelo plural e demente em que não podemos crer de todo no que vemos, sentimos e ouvimos”, com o falso e o simulado asfixiando a verdade e “assediando o tabernáculo da razão”. O chileno é mais inteligente do que irremediavelmente pessimista.
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