‘A gente salva livros para eles salvarem as pessoas’

Membro da Academia Brasileira de Letras começou a colecionar livros aos 30 anos para resgatar a produção de escritores brasileiros

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Foto do author Leonencio Nossa
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Foto: Pedro Kirilos / Estadão
Entrevista comAntonio Carlos SecchinPoeta e ensaísta

Aos cinco anos, Antonio Carlos Secchin aprendeu a ler, aos seis decidiu ser escritor e aos 19 publicou seu primeiro livro de poesias, “A ilha”. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde virou titular aos 41, formou uma geração de mestres e doutores. A posse na Academia Brasileira de Letras ocorreu aos 52. Em entrevista ao Estadão, ele observa que o ofício de um bibliófilo é resgatar livros esquecidos ou perdidos no tempo e, daí, devolvê-los para a comunidade. “A gente salva os livros para eles poderem salvar outras pessoas com a leitura, para que eles possam atingir outros públicos, e que eles possam realmente voltar a produzir algum efeito no panorama da cultura do País”, afirma.

Como o senhor se tornou bibliófilo?

Eu me tornei bibliófilo meio por acaso. Geralmente, bibliófilo é aquele garotinho que desde os cinco anos colecionava tudo. No meu caso foi tardio, depois dos 30 anos. Eu já era professor, me interessava pelos autores fora do cânone. Você pega o romantismo brasileiro. Tem ali sete autores que resumem tudo – Gonçalves Magalhães, que foi o primeiro, Gonçalves Dias, Álvares de Azeredo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela e Castro Alves, e acabou. Há muitos anos ouvi que havia 40 poetas românticos, pelo menos, que mereciam entrar em antologias. Por que esses autores sumiram? Eu comecei a me interessar por eles. A partir da pesquisa literária desenvolvi o interesse pela bibliofilia. Não foi pelo fetiche do livro. As coisas depois fluíram. Hoje em dia é impossível alguém fazer uma biblioteca dessas. Pode ter o dinheiro que tiver, mas os livros não estão mais disponíveis.

Um bibliófilo resgata livros desaparecidos de escritores influentes ou obras importantes de escritores ignorados. É uma missão literária?

Acho que a gente devia ter. Muitos não têm. Há aquele bibliófilo que, ao invés de incorporar livros, sequestra. Ele gosta de ter a sensação de possuir uma coisa que só ele tem. É o que eu chamo de bibliófilo intransitivo, que só pensa na acumulação. Quando um autor está soterrado você deixa de reconstruir a história. Um autor do passado modifica o presente. Às vezes, falta uma peça e vem a pergunta: como é que foi passar desse estilo para aquele? Um autor esquecido pode fazer a transição entre um momento literário e outro. Os livros que a gente considera que são mortos talvez estejam desmaiados, adormecidos com um monte de poeira por cima, em algum cantinho. O bibliófilo tem esse faro e essa missão de ir lá e sacudir. Ele vai dar o beijo da vida do livro. Dizem que isso é bobagem porque a história literária sabe fazer a seleção. Eu diria que até certo ponto. O problema é que o cânone uma vez constituído costuma ficar congelado. É difícil incluir autores ou obras. Hoje, quando você fala em romantismo, para dar um exemplo, os autores estudados e conhecidos são exatamente aqueles quatro ou cinco que já eram há 50 anos, quando eu fiz a graduação. E quando eu fiz a graduação já eram os mesmos que 50 anos antes entraram na História da literatura. Há tendência à acomodação historiográfica. O bibliófilo vai na contracorrente disso.

"A escrava que não é Isaura", de Mário de Andrade, 1925, 1ª edição, São Paulo. O exemplar tem uma dedicatória ao Estadão. “À ilustrada redação do ‘Estado de S. Paulo’. Mario de Andrade S. Paulo 30/I/925” Foto: Pedro Kirilos / Estadão

Essa dedicação ao livro raro é uma prática de solidariedade com seus colegas, deste tempo e do passado?

Quando a gente salva um autor do esquecimento, de alguma maneira ele se torna nosso contemporâneo. Nós o trazemos para perto de nós. Se o salvamos é porque percebemos nele algum traço comum ou uma característica que, de algum modo, dialoga com o nosso tempo. Aqui a intenção não é fazer uma coleção de múmias. É claro que há muitas múmias literárias, e até vivas também. Quer dizer, mortas, vivas. Nesse sentido, a morte e a vida não querem dizer grande coisa. (risos). Ao descobrir um livro é importante devolvê-lo para a comunidade. Espectros, da Cecília Meireles, estava perdido há 80 anos. No ano do centenário da obra, eu resgatei esse livro. O primeiro do João Cabral não era livro, ele tinha um caderninho com os poemas, na adolescência. Eu fui amigo dele, pedi e ele me deu esse caderno, que eu publiquei. São poemas anteriores ao livro de estreia dele. O Ferreira Gullar publicou no Maranhão, em 1949, um livro caseiro. Fui lá, descobri o livro e ele autorizou que republicasse.

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Nem sabem que estão mortos.

Quando só lemos a literatura pelo olhar dos três ou quatro que escaparam do tempo e se canonizaram temos a tendência de achar que toda a literatura da época era como esses quatro fizeram. Nós temos a versão vitoriosa do romantismo, é a versão chorosa, é a versão lamurienta, do poeta sofredor. Mas esse romantismo circulou paralelamente a um romantismo do humor e paródia. E por que a gente não conhece isso? Você cria toda uma história da literatura a partir de uma visão fragmentada, filtrada pelo cânone. Quando você examina os grandes poetas românticos, você vai dizer apenas que o Castro Alves tratou do grande tema romântico social que é o combate à escravidão. Aí você vai descobrir com 15 poetas ou 20 esquecidos que o grande tema social do romantismo não foi o combate à escravidão – foi a Guerra do Paraguai. O combate à escravidão era um tema que dividia a sociedade. Enquanto a abolição era um tema que dividia, a guerra era um tema que unificava o País. Também se atribui a Castro Alves a primazia em ter trabalhado o tema da escravidão. Mas ele foi um dos últimos.

A literatura dos autores negros do Século XIX está presente na coleção do senhor?

São dois nomes fundamentais. Luís Gama, com as Trovas Burlescas, e Maria Firmina dos Reis, autora de Úrsula, primeiro romance escrito por uma mulher negra no Brasil. É a autoria feminina, uma pessoa fora do eixo do poder do Rio de Janeiro. Ela publicou no Maranhão. O nome dela não consta no livro. A mulher, quando escreve o romance, não assume a autoria. como fosse algo proibido, isso aí pode ter consequências ruins. Por que não pode escrever seu nome e ter orgulho?


Ainda no Século XX os negros têm muita dificuldade. A Ruth Guimarães, por exemplo, é uma autora que ainda é desconhecida de certa forma.

Desconhecida... Acho uma escritora extraordinária. É uma mulher com interesse em folclore e outras áreas, uma produção muito ampla e valiosa, que praticamente ainda não foi redescoberta.

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Um livro físico não é só o conteúdo. É a capa, a forma, o papel. O senhor lamenta quando vê os rumos que o mundo toma?

Lamento muito. Eu sou um guardião da memória física do livro e acredito que essa memória física deve permanecer, nem que seja uma atividade de poucos, porque o livro físico contém informações que nenhuma versão eletrônica contém. Você tem a ideia de saber como é que era a tipografia de determinado momento, que tipo de papel era utilizado para a obra. Se pensar bem isso tem conexão com a literatura, com o conteúdo. Os simbolistas tinham uma missão, da arte como coisa, como alvo de essência. Eram poucos iluminados acima da plebe. E aí as tiragens de seus livros eram pequenas, porque eles sabiam que se dirigiam a poucos. As edições eram requintadas, às vezes até com impressões a três, quatro cores. Se o espírito do protagonista ficava triste as letras eram numa cor vermelha, depois passavam para verde, um requinte gráfico extraordinário. Essa parte da textura do livro, da sua materialidade, nesse caso aí, está dialogando com o conteúdo. Se você pega esses textos e coloca corrido, em Word ou PDF, perde isso tudo. Do outro lado, os naturalistas eram pragmáticos, queriam vender muito. Então, usavam papel barato e letra miúda.

Os naturalistas buscavam leitores?

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Não estavam preocupados com a eternidade da obra, até porque era uma literatura que não era para famílias. O marido tinha que comprar e levar meio escondido para casa, lia com fins que não eram propriamente literários, depois jogava fora. Livros simbolistas com tiragem mínima sobreviveram e livros naturalistas, de tiragem imensa, não sobreviveu nenhum exemplar. O que dizer das dedicatórias manuscritas? É complicado fazer isso no e-book. O bibliófilo do e-book não existe, até porque a ideia da coleção implica seletividade. Se você tem um objeto que pode ser reproduzido um milhão de vezes, esse objeto não provoca o desejo da coleção.

Há também o intelectual que depois de aproveitar uma coleção de livros se desfaz dela. Isso também não é um ato, às vezes, egoísta? Aproveitou, jogou o livro fora.

Aí estamos fazendo a distinção entre a biblioteca do colecionador e a biblioteca de trabalho. Eventualmente podem haver livros comuns nas duas, mas creio que 95% das pessoas não estão tão preocupadas com a preservação do objeto livro. O livro é o elemento instrumental na biblioteca de trabalho enquanto na do bibliófilo ele é uma finalidade de si mesmo. O que não quer dizer que o bibliófilo não leia. Têm alguns que não leem. Têm alguns que colecionam livros como outros colecionam borboletas, caixinha de fósforo, flâmulas, como objeto decorativo. Gostar de livro e gostar de literatura não é a mesma coisa. E, por outro lado, há a pessoa que só gosta da literatura. Nesse caso, tanto faz se é uma edição de ouro ou não. O mais difícil é conciliar a paixão pelo livro junto com a paixão pela literatura.

Mas hoje tem aqueles aplicativos de fundo de biblioteca...

Tem que tomar cuidado que às vezes esse fundo cai... Um senhor de muito sucesso – o empresário Humberto Saade, que morava na Vieira Souto – despertava encantamento das pessoas que conheciam a biblioteca dele. Mas não era biblioteca, era uma pintura que imitava lombadas de livros numa madeira. Não tinha perigo de alguém saber que aquilo servia para encobrir uma tubulação. Estou quase certo que 90% das pessoas que lá iam nunca tiveram curiosidade de tirar os “livros” da estante. O Luiz Fernando Veríssimo tem uma crônica deliciosa sobre um personagem que mantinha uma correspondência amorosa. Ele guardava as cartas entre os livros da sala. Não havia risco de a mulher ou filhos descobrirem. Se botasse num cofre tinha risco.

Alguma proposta de compra balançou o senhor?

O livro não se repõe, essa é a questão. Um livreiro de São Paulo insistiu muito em trocar a minha primeira edição de O Guarani por um pacote de livros raros. Um dia eu cedi. Quando ele saiu eu já estava arrependido, mesmo reconhecendo que o lote que tinha deixado era importante. Aí comecei a folhear os livros do lote e, por sorte, uma obra, As primaveras, de Casimiro de Abreu, faltava folhas. Telefonei para desfazer o negócio. Ele ficou alucinado, tentou conseguir um exemplar completo para repor. Ofereceu muito dinheiro para quem tinha. Felizmente, não conseguiu. Ele devolveu O Guarani. Tem uns quatro ou cinco livros impossíveis: O Guarani, A Moreninha, O Mulato, O Sargento de Milícias, livros que os bibliófilos buscam. No fundo acho que eles gostam de não encontrar para poder ter uma motivação. Se você tem tudo, qual é o prazer disso?

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Como o senhor enfrenta o dilema de não abrir um livro para não danificá-lo, e ao mesmo tempo, depende dele para seu trabalho?

É fetiche, né? Um amigo meu dizia: “Certos livros não podem nem ser tocados, é só olhar, e mesmo assim, se você olhar muito, leva ondas de calor”. A gente tenta conciliar. Alguns livros são de culto, de adoração, a obra rara, outros são de trabalho – não tem problema de pegar, até de fazer anotações, desde que seja a lápis.

O senhor enxerga a sua biblioteca como um corpo único?

Como todo bibliófilo eu tenho a obsessão do conjunto. Você tem que ter determinado autor, ter tudo desse autor, do primeiro ao último livro. Não deixar nenhum tijolo da catedral faltar. E eu acho que consegui isso, de certa maneira.

O que o País deve fazer para as crianças lerem mais?

Ah, se eu tivesse a resposta disso eu já teria encaminhado ao governo. Nós temos aqui uma concorrência cruel com outros meios, que são muito mais sensoriais para atrair a criança – ela usa o computador. É o mundo da imagem, da música. O caminho errado é ignorar essas realidades vividas. Não se deve lutar por uma pureza do livro. É preciso tentar de algum modo incluir o amor ao livro dentro desse universo da criança, não como algo superior, que vai criar resistência e vai deixá-la com a sensação de inferioridade. É começar com o pé no chão e, modestamente, fazer algumas guerrilhas, batalhas, levar o livro para lá. E não querer trazer a criança para cá, para o mundo da alta cultura, de uma vez. Essa é uma posição irrealista. É preciso espalhar livro em casa, com histórias acessíveis, de preferência que tragam a diversificação cultural. A criança deve ver que o seu mundo também pode fazer parte da literatura. A literatura não é só aquilo que a exclui. Aos poucos, você pode subir o sarrafo, levantar o grau de exigência.

O senhor lança agora dois livros de ensaio e um de ficção.

Fala-se muito do poeta bissexto, um poeta que faz um poema a cada dez anos. Eu sou um ficcionista bissexto – escrevo uma ficção a cada dez anos. Tanto que eu juntei tudo num livro, o Ana à esquerda, textos que eu escrevi há 30, 40 anos. Também estou publicando dois livros de ensaios. Em Papéis de prosa e Nesse e Papéis de poesia defendo a ideia de que o ensaio tem que ser compreensível para grande parte do público, não escrevo apenas para a academia. O ensaísta precisa ter essa vocação de ampliar o público leitor. Então, nesses dois livros, há muitas entrevistas que eu comento estratégias de divulgação da literatura. Num dos livros estou simultaneamente inserido como poeta e ensaísta. É um ensaio intitulado Os trinta versos de um soneto. Sabemos que um soneto tem que chegar a 14 – 30 é uma aberração. Então eu, como poeta, escrevi um soneto com seus 14 versos. Fui alterando esse poema inicial até chegar a uma versão final. Aí falou o poeta. E o que falou o crítico? Eu justifiquei essas mudanças. É uma espécie de uma oficina da poesia. Mostro o trabalho de operário da linguagem.

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