A história humana nos ensina que, apesar do horror, é preciso viver

Em Auschwitz, Primo Levi percebeu que, se a felicidade absoluta é irrealizável, também não há tristeza completa

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Por Amanda Mont’Alvão Veloso

“Os dois sabiam – de certa maneira, estava sempre na cabeça deles – que o que estava acontecendo não iria se manter por muito tempo. (...) Mas também havia vezes em que acreditavam na ilusão não só da segurança como da permanência. Enquanto estivessem naquele quarto, pensavam Winston e Julia, ninguém poderia lhes fazer mal.”

Diante do horror, verbos no gerúndio passam a sintetizar nossa existência: fugindo, desesperando, agonizando. Mas, também, sobrevivendo, como no lembrete orwelliano acima – mesmo que mediante as dores da resistência. 

O químico e escritor judeu italianoPrimo Levi Foto: Basso Cannarsa/AFP

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Não bastasse a ameaça invisível da pandemia, eis que nós, brasileiros, precisamos colocar na conta da vida a concretude da crueldade, expressa em gestos, políticas e palavras de desdém, e no elogio à estupidez. Proclamada sem vergonha, propaga como um vírus e se dissipa em autorias múltiplas, orgulhosamente identificadas. Se antes o ódio pedia uma certa capa de anonimato, agora ele frequenta cartões de visita. “Gripezinha” é retórica bélica para quem não faz ideia do que seja humanização. A despedida e o luto por aqueles que, desumanizados, fazem número às estatísticas, são confiscados ao sabor da perversidade do momento. 

“É como uma selva, o que me faz pensar ‘como é que consigo aturar?”, anunciava o rap do Grandmaster Flash and the Furious Five nos anos 1980, mas bem podia ser 2020. As perdas se acumulam e, junto a elas, transborda a sensação de sufocamento provocada pelo absurdo. Existe pausa para o horror que se impõe cotidianamente?

A arte e a ciência nunca se furtaram a reconhecer e a escancarar o pior de nós mesmos. Assim como o já citado Orwell, nomes como Pier Paolo Pasolini, Aldous Huxley, Clarice Lispector, Bertrand Russell, Stanley Milgram e Jacques Lacan recusaram a unidimensionalidade atribuída ao sujeito e fizeram questão de reportar a obscuridade constitutiva de todos nós. Na intimidade e no sigilo, pode ser que suportemos isso que nos perturba justamente por ser tão próprio. Cada um tem sua cota de trevas internas para lidar. Porém, o que vazar pode ser destruidor, de si e dos demais. 

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É do material humano que é feita a monstruosidade, nos advertiu Hannah Arendt a respeito de uma das mais perturbadoras atrocidades, o Holocausto. Nos anos 1930, Einstein questionara Freud sobre as motivações psíquicas pelas quais os homens empreendiam guerras. Antes mesmo que o primeiro conflito mundial pudesse ser digerido como passado, a 2.ª Guerra estava à espreita, em uma lamentável repetição. Repetimos, pois, aquilo que escapa ao nosso entendimento. Somos seres pulsionais que reúnem sob a mesma morada a união e o esfacelamento; com isso, a guerra é uma produção esperada, responde Freud na carta ao físico alemão. Não haveria como excluir, de nossa biografia enquanto espécie, a tendência à destruição.

Ainda assim, a história da humanidade nos conta que há de se viver apesar do horror. Experimentar o mundo em sua essência, com coragem, é o que a vida quer de nós, avisou certo brasileiro com flor no nome. Sobreviver ao mundo-moinho, este triturador de sonhos lamentado por Cartola. É que a mecânica que faz de nós sujeitos, diz Freud a Einstein, inclui laços emocionais e uma disposição para a cultura que são a antítese da guerra. Por entre frestas e letras, transcendências e criações inspiradoras, enfim, perduramos. 

Responsabilizar-se pelos próprios desejos e pelo futuro forjado para si é compromisso inadiável em tempos de desintegração da convivência. Da mesma forma, cuidar uns dos outros é a opção ética pelo sublime, o gesto necessário de repúdio à barbárie tão incitada em nossos tempos. Reinventar a vida, com as formações e deformações de mundo, é a medida do possível. 

Em retrospectiva sobre os penosos dias e noites passados no campo de Auschwitz, o químico italiano Primo Levi, perseguido pela milícia fascista, encontrou, não sem surpresa, a ordinariedade dos homens que, sob ordens, agrediam e humilhavam prisioneiros. As memórias o mantiveram vivo durante o martírio; a finitude da dor, também: “Cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se dá conta de que a felicidade completa é irrealizável; poucos, porém, atentam para a reflexão oposta: que também é irrealizável a infelicidade completa. Os motivos que se opõem à realização de ambos os estados-limite são da mesma natureza; eles vêm de nossa condição humana, que é contra qualquer ‘infinito’.”

Na ponta oposta da barbárie, tem-se o sublime das resistências e persistências, a despeito dos destroços ao redor. Ou, como bem disse Rainer Maria Rilke em seu poema Go to the Limits of Your Longing, “Deixe tudo acontecer a você: beleza e terror. Apenas continue. Nenhum sentimento é final.”

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*AMANDA MONT'ALVÃO VELOSO É PSICANALISTA, JORNALISTA E MESTRANDA EM LINGUÍSTICA APLICADA PELA PUC-SP

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